Segundo ONU, mais de 9 milhões deixaram a Ucrânia desde 24 de fevereiro. Foto: Darek Delmanowicz/dpa/picture alliance.

“Não sou traidor”, diz pai que fugiu da Ucrânia para se reunir à família. Desde o início da guerra, homens em idade militar estão proibidos de cruzar a fronteira. Mas muitos acham uma brecha – às vezes a preço alto.

Por Irina Chevtayeva

Anton (nome alterado) era empresário na Ucrânia. Em 24 de fevereiro, foi de carro até a fronteira, junto com a esposa e os dois filhos, para escapar da guerra de agressão travada pela Rússia. A viagem, que normalmente leva apenas algumas horas, durou quase um dia inteiro.

Eles já estavam na estrada quando o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, proibiu homens entre 18 e 60 anos de idade de deixarem o país. Assim, apenas a mulher e os filhos de Anton foram autorizados a cruzar a fronteira para a União Europeia.

Foi quando o ucraniano passou a buscar maneiras de se reunir à família: “Meu dever para com eles era prioridade.” Em sua primeira tentativa, dirigiu até um lugarejo na fronteira com a Romênia, com a intenção de atravessar o rio Tisza.

“Éramos vários homens. Mas os moradores nos entregaram, e fomos apanhados. Nem chegamos ao rio. Mais tarde ouvi dizer que os contrabandistas geralmente levam quatro pessoas até o rio por 5 mil dólares cada e lhes mostram onde atravessar.”

Anton chegou a ser recrutado para o Exército ucraniano, mas não foi encontrada uma missão apropriada para ele, então voltou para casa, onde retomou os planos de deixar o país.

“O pio de tudo é a incerteza”. Foto: DW

Dicas nas redes sociais

A proibição de sair da Ucrânia não se aplica a pais solteiros, com três ou mais filhos, ou portadores de deficiência. Estudantes de universidades estrangeiras, motoristas de veículos de ajuda humanitária e indivíduos com residência permanente no exterior também estão isentos da proibição.

Quem não se encaixa nessas exceções e quer sair da Ucrânia o faz, por exemplo, pela Crimeia, que foi anexada pela Rússia. Outros se matriculam numa universidade estrangeira, procuram emprego como motorista voluntário, ou simplesmente tentam atravessar a pé a fronteira em trechos menos protegidos, como aqueles com vegetação.

Nas redes sociais há várias dicas. Um perfil do Instagram que se pode traduzir como “Partida para todos” tem mais de 14 mil seguidores. Por mensagem direta, a conta cobra 980 euros para informar como se matricular em dez dias numa universidade da Polônia ou de outro país europeu – retroativamente, numa data antes do início da guerra.

“Meu coração está em Kharkiv”. Foto: DW

“Somos chamados de traidores”

Anton também conseguiu deixar a Ucrânia, por meio de uma organização humanitária criada por amigos. “A fundação solicitou uma autorização de saída. Todos nós fomos dirigindo, e os carros voltaram para a Ucrânia com ajuda humanitária, mas eu fiquei na UE”, conta.

“Homens como eu são chamados de traidores. Não tenho medo do front, e se não tivesse filhos já estaria lá há muito tempo. Mas a gente não teve filhos para que a minha mulher tenha que sobreviver de algum jeito sozinha com eles.”

Na Ucrânia, parece ser grande o interesse em deixar o país. O canal do Telegram “Mudança legal para o exterior” tem mais de 53 mil seguidores, e um canal de apoio, “Ajuda na fronteira”, mais de 28 mil.

Por 1.500 dólares, este último oferece um certificado de isenção do serviço militar por razões de saúde. Outra é deixar o país ostensivamente como motorista de caminhão de ajuda humanitária, como fez Anton. Alega-se que dez homens têm cruzado a fronteira dessa forma, todos os dias, a 2 mil dólares por cabeça.

No Telegram leem-se comentários de ucranianos que supostamente utilizaram esses serviços: “Fui como ajudante, tudo correu mais rápido e mais fácil do que eu pensava”; “Obrigado por ajudar meu filho, ele agora está na Itália”; “Cheguei à Bulgária, estou grato”.

A DW escreveu para vários desses usuários, mas apenas um respondeu, dizendo que não quer “arriscar nada, nem dizer nada”.

Maioria vai para Polônia e Alemanha

Segundo a ONU, mais de 9 milhões de ucranianos deixaram o país desde 24 de fevereiro, quando se iniciou a guerra. A DW indagou ao serviço de controle de fronteiras da Ucrânia quantos desses refugiados são homens, mas ainda não recebeu resposta.

Em 1º de março, o Ministério do Interior ucraniano informou que cerca de 80 mil homens em idade militar haviam retornado do exterior, a maioria após 24 de fevereiro, “para defender a soberania e a integridade territorial”.

Polônia e Alemanha foram os países que mais acolheram refugiados. Segundo as autoridades polonesas, 3,6 milhões de ucranianos entraram no país entre 24 de fevereiro e 7 de junho, sendo 432 mil homens de 18 a 60 anos.

Já a Alemanha recebeu 867.214 refugiados do fim de fevereiro a 19 de junho. Segundo pesquisa realizada  em março pelo Ministério do Interior alemão, 48% dos que haviam chegado até então eram mulheres com filhos, 14% solteiras; 7% homens com filhos e 3% solteiros.

Advogado Alexander Gumirov pede a suspensão da proibição de viagem para homens. Foto: Privat

Advogados questionam proibição

O advogado Alexander Gumirov, de Odessa, lançou uma petição em maio pedindo a suspensão da proibição de viagem para homens, e defendendo o recrutamento de voluntários. Em poucos dias, conseguiu reunir 25 mil assinaturas e, consequentemente, o presidente teve que analisar a demanda.

Zelenski reagiu duramente, dizendo que a petição deveria ser enviada aos pais dos soldados que perderam suas vidas defendendo a Ucrânia.

Gumirov ainda considera inútil a proibição do governo ucraniano. “Se alguém quer defender sua pátria livre e amada, sua casa e sua família, então não há necessidade de uma proibição de viagem ao exterior. E se alguém não quer defender sua pátria, mesmo assim tal veto é desnecessário.”

O advogado afirma que muitos homens estão tendo dificuldades para encontrar emprego na Ucrânia atualmente, portanto não conseguem sustentar suas famílias e pagar o devido imposto ao Estado.

Além disso, a proibição acaba gerando corrupção. Como advogado, ele é consultado diariamente sobre possíveis “brechas” para contornar o veto, acrescentando que geralmente os pedidos vêm acompanhados de ofertas de suborno.

Seu colega Dmytro Busanov, de Kiev, explica que, de acordo com a Constituição, restringir o direito de deixar a Ucrânia só pode ser regulamentado por lei, o que não foi feito até agora. Portanto, ele considera ilegal a atual proibição.

“Recebo muitas queixas, mas os cidadãos não querem recorrer à Justiça”, revela o advogado, que acredita ser possível levar a questão ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Críticas de conterrâneos

Os homens ucranianos que foram para o exterior são muitas vezes condenados pelas esposas dos que agora lutam na guerra, conta uma advogada ucraniana que pediu anonimato.

Ela, cujo marido é voluntário no front, diz em princípio apoiar a petição de Alexander Gumirov, mas opina que o texto foi redigido incorretamente. “A mensagem é: vamos todos sair do país e deixar os voluntários lutarem. Isso é injusto.”

A advogada, que atualmente está na União Europeia com os filhos, frisa que não há voluntários suficientes. Seu marido quer lutar, mas também quer ver os filhos. Por isso ela defende que os soldados tenham licenças breves e possam viajar para o exterior.

Anton já está há algum tempo com a esposa e filhos num país da UE, onde aprende a língua local e procura um emprego. Ele não descarta voltar para casa, se a Ucrânia vencer a guerra.

“Em tempos de paz, sempre disse que a Ucrânia é um dos melhores lugares”, diz o empresário, que se considera um patriota. “Quero que a guerra termine o mais rápido possível, e estou enviando dinheiro para o Exército. Estamos longe agora, mas isso não significa que eu seja um traidor.”

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Com informações do portal DW

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