“A fábula de uma tragédia real” é o que diz um intertítulo no início do filme Spencer (2021), de Pablo Larraín: talvez um aviso precoce das fantásticas reviravoltas que virão a seguir.

Por BBC News 

Com o aclamado novo filme estrelando Kristen Stewart e o ridicularizado musical da Netflix, continuam sendo produzidas representações da vida da falecida princesa de Gales.

“A fábula de uma tragédia real” é o que diz um intertítulo no início do filme Spencer (2021), de Pablo Larraín: talvez um aviso precoce das fantásticas reviravoltas que virão a seguir.

Este pode ser aparentemente um filme sobre Lady Diana Spencer, a princesa de Gales, falecida em agosto de 1997, mas não é, sob nenhuma análise convencional, o tipo de filme biográfico geralmente em voga no cinema de Hollywood.

A maioria se lembra, é claro, da última tentativa de mostrar a vida de Diana na tela grande: o infame Diana (2013), de Oliver Hirschbiegel, que abordou seu caso amoroso de dois anos, após o divórcio, com o cirurgião cardíaco Hasnat Khan, adaptado da biografia de Kate Snell Diana: Her Last Love (“Diana: seu último amor”, em tradução livre), de 2001.

Os dois filmes não poderiam ser mais distintos. Enquanto Diana é um estereótipo desastrado, um vazio artístico, Spencer tem o benefício da hábil direção de Larraín.

O filme é simultaneamente familiar e enigmático, como a própria personagem-título, repleto de surrealismo expressivo e desafiador, idealizando Diana em um horrível feriado de Natal em Sandringham House, propriedade da rainha Elizabeth 2ª, em 1991 – quando seu relacionamento com o príncipe Charles estava próximo do fim.

Para grande desalento de Diana, tudo o que ela faz durante essa estada é regido de forma militar, desde a escolha de suas roupas até os alimentos que ela pode comer.

Uma cena específica, que sugere a rigidez opressiva do mundo que ela precisa enfrentar, fica gravada na memória.

Diana está jantando com os outros membros da família real, que tomam a sopa em colheradas levadas à boca com simetria robótica. A câmera mostra a rainha com olhar austero, do ponto de vista de Diana; em seguida, a cena se inverte e parece nos comprimir contra ela, colocando-nos dentro da sua mente em parafuso.

Em pânico, ela derruba as pérolas que rodeiam seu pescoço no próprio prato de líquido verde. Em seguida, em um momento de horror avassalador – como se estivesse comendo olhos suspensos em um caldo venenoso – ela engole as pérolas inteiras, com grande dificuldade.

É uma das muitas metáforas visuais ricas do filme para transmitir a solidão sufocante de Diana – literal e psicológica – e outra dentre várias indicações de que Larraín não segue as regras dos filmes biográficos comuns.

O diretor chileno Larraín, cuja filmografia poderá ser considerada esotérica, decidiu produzir Spencer porque ele queria fazer um filme que agradasse sua mãe. Mas por que ele acha que Diana – como mito, ícone pop e figura cultural – combina tão bem com ela?

“Bem, eu não tenho certeza”, contou ele à BBC. “Este é o ponto. É claro que, quando eu cresci no Chile e via minha mãe tão interessada, eu era um garoto. E então percebi que minha mãe era apenas uma entre milhões [de fãs de Diana] em todo o mundo. Quando [Diana] morreu em 1997, eu compreendi que o mundo estava de luto.”

Foi depois de Jackie, seu filme biográfico similar de 2016 sobre Jacqueline Bouvier Kennedy, Onassis, que ele decidiu fazer Spencer, mergulhando em um profundo processo de pesquisa sobre a princesa falecida – que, segundo ele, incluiu a leitura de muitas reportagens da BBC.

Na quarta temporada da série The Crown, Emma Corrin talvez tenha oferecido a interpretação mais sensível da personagem Diana. Reuters

“Acho que, culturalmente falando, ela é uma das pessoas mais conhecidas da cultura contemporânea. E, ao mesmo tempo, é a mais misteriosa delas. Esse paradoxo… é simplesmente maravilhoso para o cinema e para a arte [em geral]”, segundo Larraín.

O fato de que tantos produtores cinematográficos, documentaristas, produtores de televisão, escritores, artistas, atores e compositores musicais tenham tentado abordar a história, e mesmo o mito, de Diana serve para sugerir que Larraín tem razão.

Com certeza, seja devido a esse paradoxo cheio de dramaticidade ou por outra razão, ela inspirou inúmeros trabalhos na cultura popular, desde as artes visuais (como a estátua de Diana, construída por Ian Rank-Broadley e inaugurada no início deste ano na sua antiga casa, o Palácio de Kensington, retratando-a como um ser divino) até o teatro, o cinema e a TV.

Pelo menos uma dúzia de atrizes a retrataram na tela ao longo dos anos, incluindo as mais aclamadas Kristen Stewart, no filme Spencer, e Emma Corrin, na quarta temporada da série The Crown.

No outro extremo do padrão de qualidade, entre os diversos filmes biográficos produzidos para televisão, Diana, o filme de Hirschbiegel, estrelando Naomi Watts como a princesa, é provavelmente o maior fiasco de todos eles.

“Diana não precisa nem mesmo ser comparado com nenhum outro filme para ser identificado como um fracasso”, segundo o crítico de cinema Guy Lodge. “Ele foi simplesmente uma tempestade perfeita, que reuniu um péssimo roteiro, direção confusa e atores totalmente à deriva nessa confusão.”

Enquanto isso, Diana: O Musical (2021), o recente show barato da Broadway que teve sua exibição suspensa devido à pandemia, mas foi lançado em versão filmada na Netflix em setembro passado para menosprezo de muitos, foi mais bem recebido com seu pequeno orçamento.

Dentre seus muitos absurdos, ele se apega a um dos mitos mais enganosos sobre Diana promovidos pela cultura popular: que o início de seu namoro com o príncipe Charles teria sido um conto de fadas, da menina pobre que conhece a riqueza – apesar da fortuna multimilionária e da linhagem aristocrática de muitas gerações da família Spencer.

“É totalmente inverídico [pensar em Diana na classe trabalhadora]”, afirma Lodge, “mas se encaixa perfeitamente no mito” – um mito que se estabeleceu na cultura popular a partir do momento em que Diana ficou conhecida pelo público.

Press Association
Desde seu casamento com Charles em 1981, a cultura popular começou a criar mitos em torno de Diana.

O início de uma obsessão cultural

Já em 1982, apenas um ano depois do seu casamento com o príncipe Charles, as redes de televisão norte-americanas voltaram sua atenção para a florescente história de Diana com Charles & Diana: A Royal Love Story (“Charles e Diana: uma verdadeira história de amor”, em tradução livre).

O drama documentário produzido pela ABC que estreou em setembro daquele ano enquadrou superficialmente seu namoro inicial no cenário dos contos de fadas, culminando com a encenação da cerimônia na Catedral Saint Paul´s, em Londres.

Apenas três dias depois, a CBS apresentou sua própria dramatização das núpcias, adequadamente denominada The Royal Romance of Charles and Diana (“O romance real de Charles e Diana”, em tradução livre), que retratou um romance ainda mais meloso e perfeito, mas foi um sucesso de audiência.

Tom Shales, do jornal norte-americano Washington Post, comparou este último com o filme da ABC e o descreveu como sendo inferior, de um “voyeurismo real maravilhado, incapaz e aparentemente desinteressado em transformar vultos distantes dos noticiários em seres mortais palpáveis”.

Mas mesmo o primeiro, com seus brilhantes floreios quase majestosos, sua pompa real e fantástico assombro, é um produto de clara anglofilia, que vê a monarquia com os mesmos olhos brilhantes de uma criança.

É claro que não demorou muito para que começassem os rumores de problemas conjugais, até que, em 1992, as fitas do “Camillagate”, revelando conversas íntimas de Charles com sua paixão da infância, Camilla Parker-Bowles, antecederam a separação oficial de Charles e Diana.

“As pessoas que puderam ver seu casamento… assistiram a uma narrativa construída de conto de fadas sendo desfeita em tempo real”, relembra Lodge. “Foi atraente para a imprensa, é claro, que trouxe inicialmente sua história para a maioria de nós.”

Por isso, as dramatizações da vida de Diana que se seguiram, em sua maioria, imaginaram a queda da princesa de contos de fadas, fixando-se no trágico turbilhão de fotógrafos paparazzi agressivos, na obsessão do público, celebridade tóxica, distúrbios alimentares e desilusão amorosa que viriam a dominar sua imagem popular.

Um desses exemplos anteriores à sua morte é Princess in Love (“A princesa apaixonada”, em tradução livre), de 1996, outra capitalização da “Dianamania” feita pela CBS para televisão, que se concentra no seu caso amoroso com o capitão James Hewitt – desta vez, com base no livro do mesmo nome de Anna Pasternak, que teria contado com Hewitt como fonte central.

Nele, são apresentadas as discussões familiares: Diana e Charles brigando sobre Camilla, o “terceiro membro” do casamento (“você não acha que há gente demais aqui?”, pergunta Diana, em uma fala adaptada da sua famosa entrevista de 1995 ao jornalista Martin Bashir para o programa Panorama, da BBC); Charles, hipocritamente, responsabiliza Diana pelas suas indiscrições; e o relacionamento sem amor a leva para os braços de outro. Com seu tom piegas e sua série de padrões comuns, a produção não se destacou.

É impossível saber o quanto Diana poderia estar na consciência cultural se fosse viva hoje. Mas pouco se duvida do seu real endeusamento causado pela morte inesperada em 1997, como ocorre frequentemente com ícones pop falecidos com pouca idade.

Horas depois da confirmação da sua morte, o primeiro-ministro britânico Tony Blair já a chamava de “a princesa do povo” e esta seria sua imagem duradoura.

Essa ideia somente veio a se consolidar ainda mais na cultura popular contemporânea, com a exaltação de Diana como figura trágica – a mesma adotada por Spencer, como se poderia esperar com o intertítulo mencionado acima.

Mas a essência dessa tragédia ainda é sujeita a interpretações. “Tudo o que um herói da tragédia grega faz é escapar da tragédia”, segundo Larraín.

“Mas, ao fazê-lo, ele só chega mais perto da tragédia. E, no fim, enfrenta a morte. É isso que, infelizmente, acredito que Diana viveu metaforicamente. E, de forma muito prática, ela estava dirigindo com rapidez para escapar da imprensa quando sofreu o acidente em Paris naquela noite”, acrescentou o diretor chileno.

Larraín observa que ele e o roteirista do filme, Steven Knight, queriam deliberadamente ignorar a “tragédia específica” – ou seja, os anos, meses e dias finais de Diana, e até o acidente fatal – em troca de algo mais metafórico: em suas palavras, “uma sentimento de tragédia, uma atmosfera trágica na personagem”.

E, enquanto produções como Diana e Diana: O Musical abordam superficialmente a angústia de Diana, explorando cinicamente a tragédia como catástrofes baratas como fazem os tabloides, o filme Spencer oferece uma representação mais robusta da princesa.

“Eu gosto muito de Spencer, mas, mesmo se você não gostar – já que o cinema de Larraín ainda é controverso -, você pode observar que ele é comprometido com um ponto de vista”, afirma Lodge.

“Ele traça um mundo físico e psicológico em volta da heroína que é totalmente envolvente e se interessa fundamentalmente em Diana enquanto personagem humana, não como uma manchete ambulante.”

A variedade infinita de Diana

Merecidamente, Spencer recebeu inúmeros aplausos da crítica desde sua estreia no Festival de Filme de Veneza em setembro passado, desafiando a audiência com sua abordagem formalmente audaciosa da vida da princesa.

Sandringham House parece tão “assustadora quanto o hotel de Kubrik em O Iluminado”, segundo Xan Brooks, do jornal The Guardian, “com corredores sem fim, quartos mal-assombrados e visitantes pálidos sentados à mesa em postura totalmente ereta”.

Muitos críticos também destacaram o ponto de vista aparentemente republicano do filme, mais direto que implícito: “se você tiver o menor desapreço sobre a… monarquia britânica”, segundo Jessica Kiang, do site The Playlist, “um dos maiores prazeres… é imaginar como [Spencer] exibirá os personagens ainda vivos indiretamente retratados pelo filme”.

Outros, como Xan Brooks, no jornal The Guardian, argumentaram que a abordagem ousada e irreverente do filme só poderia vir de um “outsider” – alguém que não cresceu na sombra de Buckingham e Windsor que cobre o país.

Mas Larraín não se considera dessa forma. “Venho de uma república – que pode ser melhor ou pior – mas não me considero um ‘outsider’ com relação a Diana”, afirma ele.

“Acho que ela é parte da narrativa universal, [para quem] os países e regiões têm diferentes percepções e abordagens. Algumas delas são muitos simples: referem-se à moda, à família e à caridade.”

Cada atriz que interpretou Diana também ofereceu sua própria interpretação da princesa, embora com sucesso variável.

Dentre as interpretações mais famosas, Watts optou por uma personificação óbvia, enquanto Corrin, embora possua provavelmente a menor semelhança física, talvez ofereça a interpretação mais sensível da personagem Diana, habilmente invocando familiaridade com afetações – como a famosa inclinação de cabeça.

Já a princesa de Stewart é a mais inesperada, intencionalmente teatral e maravilhosamente sofisticada. A variedade dessas interpretações confirma um ponto importante destacado por Larraín: “todos nós temos uma versão de Diana dentro de nós. Dependendo de onde você é, da sua instrução, dos seus interesses, do seu gênero, da sua orientação sexual etc. – você acabará por criar a sua própria versão”, comenta ele, acrescentando que ele vê Diana como “fragmentos, quase como um Picasso… que, quando você reúne, criam o ícone”.

A própria versão de Larraín para Diana mudou à medida que ele concebia Spencer e percebia que, para ele, era afinal um filme sobre a maternidade, segundo ele.

Essa representação certamente tem razão de ser. Talvez a cena mais emotiva de todos os trabalhos mencionados até aqui é aquela em que, no início do segundo ato de Spencer, Diana, Harry e William brincam de “soldados” no meio da noite.

É um misto de jogo e ritual elaborado, baseado em candura, no qual os melhores jogadores são penalizados – sob a alegação de serem pessoas cuidadosas (sim, esta é uma metáfora recorrente) – e precisam compartilhar seus pensamentos mais sinceros. É pelo prisma do afeto materno que a alma de Diana é mais completamente exposta.

O que o mito de Diana nos trará em seguida?

Os telespectadores de The Crown podem esperar Elizabeth Debicki tomar o lugar de Emma Corrin para interpretar os últimos anos da princesa nas duas temporadas finais da saga. Mas, depois disso, só o tempo dirá.

Talvez, depois de tantas abordagens declaradamente trágicas da vida de Diana, surjam mais representações da princesa mostrando a luz em vez da sombra e até alguma alegria – de forma semelhante ao musical e ao episódio da série britânica Urban Myths, da Sky TV. Ambos contaram a história apócrifa da visita da princesa ao famoso local de entretenimento LGBTQ+ The Royal Vauxhall Tavern, em Londres, junto com Freddie Mercury e o DJ Kenny Everett.

Mas, como cada interpretação oferece algo novo e cria ainda mais discussões, um ponto permanece certo: a aura de mistério de Diana nunca será completamente desfeita.

Com informações da BBC NEWS 

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