Funcionários do Hospital Pronto-Socorro João Lúcio retiram corpo de vítima da covid-19 de contêiner frigorífico, em Manaus Imagem: SANDRO PEREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

Estudos indicam que a genética feminina tem efeitos protetores contra o coronavírus

Por Nuño Dominguez

A covid-19 mata muito mais homens do que mulheres. Apesar de um ano de pesquisas sobre o vírus, ainda não está claro por quê. Sabe-se que a idade avançada é um dos principais fatores de risco, mas a mortalidade entre homens idosos é duas vezes maior que a das mulheres da mesma idade. Isso acontece com muitas outras doenças e se deve em parte a fatores externos de comportamento e estilo de vida. Mas ainda assim a diferença é tão brutal que deve haver algo mais. E tem: gênero biológico.

As diferenças entre os gêneros vão muito além dos órgãos sexuais. O sexo biológico tem influência decisiva no funcionamento do sistema imunológico, algo observado tanto em animais quanto em humanos. Em geral, as mulheres têm sistemas imunológicos mais eficazes do que os homens. Por exemplo, as mulheres geram mais imunidade contra a gripe do que os homens depois da vacinação, enquanto os homens com HIV tendem a ter uma carga viral maior do que as mulheres infectadas, lembram nesta quinta-feira Takehiro Takahashi e Akiko Iwasaki, imunologistas da Universidade de Yale (EUA), em um artigo publicado na Science. Essa força imunológica ocorre desde os primeiros meses de vida: as meninas são muito mais resistentes do que os meninos a infecções, guerras, fome e outras calamidades.

Tudo isso é importante porque a morte por covid-19 não se deve tanto ao coronavírus quanto à reação disfuncional do próprio paciente. Dias após a infecção, há pessoas que começam a produzir grandes quantidades de proteínas inflamatórias que, em tese, deveriam alertar as tropas de elite do sistema imunológico. Mas essa sobrecarga inflamatória acaba colapsando as defesas e dinamitando o funcionamento dos pulmões. É a agora famosa tempestade de citocinas, o nome das moléculas inflamatórias que podem agravar a doença até a morte.

O mais interessante é que a produção dessas moléculas é muito mais comum nos homens do que nas mulheres, principalmente nas idades avançadas. Além disso, os homens idosos geram menos linfócitos T capazes de identificar e destruir células infectadas. E há apenas alguns meses um estudo mostrou que alguns pacientes com covid geram anticorpos defeituosos que pioram seu estado e podem causar a morte. 95% dos casos conhecidos eram homens. É como se o sistema imunológico masculino na velhice colocasse obstáculos a si mesmo.

Do ponto de vista biológico, o homem se caracteriza por possuir um único cromossomo X, herdado da mãe, e um cromossomo Y, do pai, enquanto a mulher possui duas cópias do cromossomo X, uma de cada um dos pais. Os cromossomos —os humanos têm 23 pares— são como os átomos em que se divide todo o nosso genoma, a sequência única com mais de 3 bilhões de letras genéticas que contêm todas as informações que configuram uma pessoa e que lhe permitem respirar, mover-se, reproduzir-se, viver. O cromossomo X contém vários genes fundamentais para o correto funcionamento do sistema imunológico. Há alguns meses, uma equipe de médicos da Holanda analisou pares de irmãos, todos homens, jovens na casa dos vinte anos, que adoeceram de covid grave e um deles inclusive morreu. A análise genética revelou um defeito no gene TLR7. “Esse gene produz proteínas muito importantes para detectar a entrada de um vírus no organismo”, destaca Anna Planas, do Instituto de Pesquisas Biomédicas de Barcelona (CSIC). “Este gene está localizado no cromossomo X.” Os homens afetados tinham apenas uma cópia do gene e era defeituosa. Por outro lado, as mulheres têm uma vantagem importante nesse aspecto.

Embora normalmente apenas uma de suas duas cópias do cromossomo X esteja ativa, nem sempre é a mesma. “Esse fenômeno significa que mais ou menos 50% das células de uma mulher usarão a cópia do cromossomo X que seu pai passou para ela e os outros 50% usarão a da mãe”, explica José Luis Labandeira, professor de Anatomia Humana da a Universidade de Santiago de Compostela. “Se uma mulher tem um defeito em um dos genes do sistema imunológico do cromossomo X, isso pode ser corrigido porque nem todas as suas células usarão a cópia danificada”, detalha.

No cromossomo X existem também outros genes que podem permitir que as mulheres desenvolvam uma resposta imunológica mais equilibrada do que os homens, especialmente em idades avançadas. Como o resto do corpo, o sistema imunológico envelhece, mas não no mesmo ritmo. Os homens experimentam um enfraquecimento de suas defesas a partir dos 63 anos. Uma das mudanças mais marcantes é que a função inflamatória do sistema imunológico fica mais forte enquanto há um enfraquecimento da imunidade adaptativa, que é a segunda e mais sofisticada linha de defesa, pois inclui células especializadas para fabricar anticorpos contra novos vírus e também células de memória que se lembrarão deles e os destruirão se voltarem a aparecer. Essa senescência do sistema imunológico também ocorre nas mulheres, mas chega cerca de cinco anos depois.

O estrogênio —um hormônio feminino— regula o funcionamento de muitos tipos de células do sistema imunológico. Uma das formas desse hormônio contribui para diminuir os níveis de proteínas inflamatórias, algo que pode ser fundamental quando se está à beira de uma tempestade de citocinas. O estrogênio também aumenta a produção de ACE2, a proteína da superfície celular que o coronavírus usa como porta de entrada para nossas células. “No início pensava-se que produzir mais ACE2 seria prejudicial, mas vimos que não é”, explica Labandeira. “Essa proteína também tem outros efeitos anti-inflamatórios. Se as mulheres produzirem mais dessa proteína, isso pode ter efeitos positivos. É algo que também mostramos com medicamentos que aumentam a ECA2, como o ibuprofeno. Não têm efeitos nocivos”, detalha. Também há indicações em contrário: uma terapia que reduz a produção de hormônios sexuais masculinos reduz o risco de infecção por SARS-CoV-2, destaca o trabalho da Science.

Em todo caso, o efeito protetor dos hormônios femininos duraria apenas até a menopausa, por isso não pode ser muito determinante para explicar a mortalidade por sexo em idades de 70 ou 80 anos, alerta Vicente Rubio, pesquisador do Instituto de Biomedicina de Valencia (CSIC). “A mortalidade por covid é multiplicada por oito a partir dos 55 anos e nas pessoas com mais de 65 anos é 64 vezes maior”, explica. “A grande incógnita é entender por que um aumento tão brutal acontece com a idade. Ainda não podemos explica-la totalmente, nem a maior mortalidade em homens, embora provavelmente seja devido a essa reação inflamatória desenfreada à infecção”, destaca.

Com informações do El País 

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