Por Delmo Menezes

Não podemos mais fazer remendo na saúde. Temos que construir e não reconstruir. Não existe mais nenhum modelo. O que existe é da década de 90. (Dr. Walter Gaia).

Mineiro de Unaí, cidade que fica a 165 km da rodoviária do Plano Piloto, Dr. Walter Gaia Souto, adotou Brasília como sua cidade natal. Aqui formou-se em medicina pela Universidade Federal de Brasília (UNB), onde especializou-se em gineco obstetra e médico sanitarista. Foi coordenador de saúde de Sobradinho, diretor do hospital de Sobradinho, professor da Escola Superior de Ciência da Saúde (ESC), e recentemente superintendente da região leste de saúde do DF.

Nesta entrevista concedida com exclusividade ao Agenda Capital, Walter Gaia, que é especialista em Atenção Primária, fala que desde a década de 90, quase nada foi realizado em relação à atenção primária, e segundo ele, os números de cobertura em atenção são fictícios e que o sistema de saúde está ultrapassado.

Veja entrevista completa:

01 – Dr. Walter, há muitas reclamações de pacientes que diariamente procuram os Centros de Saúde para resolver os seus problemas, como consultas médicas, exames, vacinas, remédios e muitas vezes não conseguem solução. O modelo de gestão utilizado nos Centros de Saúde, atende à necessidade da população?

Dr. Walter Gaia – Eu posso te afirmar que não atende às necessidades da população. Mas para isso temos que relembrar o passado. No início dos anos 70, existia um movimento no Brasil capitaneado por um médico sanitarista chamado Sérgio Arouca, que foi o movimento da reforma sanitária. Este movimento culminou na 8ª conferência de saúde, que foi a responsável por uma discussão de um amplo modelo de saúde, que contemplava não só a parte assistencial, mas também as questões referentes a qualidade de vida da população. Nesta 8º conferência, é que nasceu o capítulo da saúde da Constituição Federal. O modelo hoje utilizado nos Centros de Saúde, não tem como melhorar. Já foram feitos todos os remendos possíveis. O modelo de assistência está equivocado. A realidade epidemiológica hoje, é bem diferente, quando se pensou em Centro de Saúde, em hospital, na década de 50 do século passado. Aquilo que se dizia a cerca de 60 anos atrás, não é o que acontece hoje. Nosso modelo de saúde está equivocado.

02 – Na sua opinião, qual é o percentual mínimo de cobertura da Estratégia Saúde da Família, que atenderia a grande expansão populacional que ocorre no DF? O que falta para ser colocado em prática?

Dr. Walter Gaia – Para isso, era preciso que eu acreditasse na Estratégia Saúde da Família (ESF). A ESF não é capaz de fazer frente à nova realidade epidemiológica sanitária do país. Há 60 anos atrás, a principal causa de mortalidade, eram as doenças infecciosas parasitárias. Hoje as principais causas de doenças no país são as neuro vasculares, infarto agudo do miocárdio, e surgiu um elemento extremamente novo, que é a questão da violência. Eu sou o precursor da Estratégia Saúde da Família, mas já está ultrapassado. Hoje o que precisamos é incorporar a assistência multiprofissional dentro da atenção primária na saúde. O novo modelo de saúde clama por enfermeiros, não de maneira marginal e periférica dentro do sistema, ele clama por fisioterapeutas, por psicólogos, por terapeutas ocupacionais, ou seja, é uma nova realidade epidemiológica.

20160727_09455703 – A cobertura de Atenção Primária que era de 15,74% em 2010, aumentou para 50,58% em 2013 (Fonte SES-DF). Segundo informações, estes percentuais caíram novamente. Por que houve retrocesso?

Dr. Walter Gaia – Em primeiro lugar tenho que te responder, que esta cobertura é fictícia. A portaria de 2006 do Ministério da Saúde, que estabelece a política nacional de atenção básica, que depois foi refeita em outubro de 2011, fala que para haver cobertura tem de haver vínculo, tem que haver pertencimento, ou seja, a equipe de saúde tem que entender que ela é responsável pelo paciente, e aquela pessoa tem que entender que existe uma equipe responsável por sua saúde. Na realidade o que existe hoje no Distrito Federal, chama-se cadastro de cobertura. Estas coberturas com os números que estão, são fictícios. Os números que aí se encontram, estamos chamando cadastro de cobertura. Eu visitei algumas comunidades, elas estão da mesma maneira que quando o ex-governador Cristovam Buarque deixou a muitos anos atrás. Não mudou nada.

04 – Existe no DF, nove Clínicas de Saúde da Família, com excelente estrutura física. Estas clínicas não estão funcionando como deveriam. Como poderiam ser melhor aproveitadas?

Dr. Walter Gaia – A Clínica da Família estava projetada para ficar dentro de um complexo da saúde, que engloba Academia da Saúde, UPA e a Clínica da Família. O que nós defendemos para um modelo de saúde, inclusive dentro das Clínicas da Família, é a assistência multiprofissional. Não estou falando o que o Ministério da Saúde preconiza. Eu defendo que a vanguarda que compõe a equipe, seja composta de multiprofissionais. Para fazer frente à nova realidade epidemiológica vigente no país, é necessário que se construa um novo modelo de saúde. Hoje não temos modelo de saúde, nem no DF e nem no Brasil. É muito pobre para um Ministério da Saúde, discutir o “Mais Médicos”, temos que discutir o “Mais Saúde”.

05 – Uma das pautas recorrentes que está gerando uma enorme polêmica, é a questão da implantação do modelo de gestão através das Organizações Sociais. O governo pretende iniciar este modelo pela Atenção Primária na Ceilândia. O senhor como um médico reconhecido pela sociedade como um dos precursores na implantação da Atenção Primária no DF, como avalia esta situação?

Dr. Walter Gaia – Eu defendo na perspectiva do usuário. Eu defendo muito o controle social. Muitas vezes os representantes do controle social, são levados para uma discussão, inclusive de militância política. Na realidade está tendo uma inversão nesta discussão. Uma agenda positiva do governo atual, é priorizar a atenção primária. A partir do momento que ele priorizou a atenção primária, eu não entendo o porquê de se está discutindo se é “OS” ou não. Temos que aproveitar a existência desta agenda política, de implementar a atenção primária, e ver o melhor mecanismo, para estruturação no DF. Em Ceilândia, é necessário que se ouça a população, até os conselhos de saúde são viciados nesta discussão, porque, existe o patrulhamento enorme em relação as “OS”.

Eu do ponto de vista particular, acredito enormemente na gestão pública. Eu estava em uma reunião no conselho de saúde do Paranoá, quando veio um cidadão, representando os usuários, o trabalhador rural, levantou o problema da sua comunidade.Perguntei para ele: “Se chegarmos aqui com a atenção primária. Para vocês, é importante que a gestão seja através de “OS”, ou é importante que seja através da gestão pública? ” Ele me respondeu: “Doutor eu sou contra as Organizações Sociais, mas se vier atenção primária através das “OS”, a população vai aplaudir o senhor”.

Nós temos que ter a humildade de saber, que não somos o dono da verdade. E para isso eu vou levar ao secretário de saúde e ao Conselho de Saúde do DF, uma proposição realizando o 1º encontro dos usuários do SUS e agentes comunitários de saúde, que são os que ficam mais perto da população. Se for para trabalhar com “OS”, vamos trabalhar, porém sabendo que é um desenho provisório e do ponto de vista epidemiológico, não atende as demandas da população.

20160727_09463106 – Recentemente o ministro da saúde em entrevista declarou que o programa “Mais Médicos” criado em 2013 pelo governo federal, vai continuar. Na sua avaliação, este programa atende as demandas das populações mais carentes?

Dr. Walter Gaia – Não atende. Eu acho muito pobre, para um país que já ditou políticas públicas para o mundo, ter o programa “Mais Médicos”, como prioridade. Nós temos um exército de profissionais de saúde em situação de desemprego. Há dois anos atrás, antes da minha aposentadoria, eu visitei todas as UTI’s do Distrito Federal, e constatei, que temos doentes crônicos, ocupando indevidamente os leitos dos hospitais. A neurocirurgia sendo ocupado pelo paciente jovem vítima da violência. Na neurologia o idoso sequelado de derrame cerebral, e não consegue ter alta. Na realidade temos que ter um trabalho amplo na atenção primária. Não é mais aquele desenho antigo. Hoje a atenção primária tem que incorporar a tecnologia com assistência multiprofissional. Muitas vezes o fisioterapeuta vai ter um papel mais importante em determinada localidade, do que o próprio médico, da mesma forma o enfermeiro, o psicólogo, o assistente social, vão ter papeis fundamentais. O médico é para atender situação aguda do resfriado, da amidalite, nestes casos é necessário a intervenção médica.

07 – Existe um modelo ainda não testado no Distrito Federal, que na sua opinião poderia ser implantado na saúde pública?

Dr. Walter Gaia – Existem sim modelos que ainda não foram testados.  Em Sobradinho no ano de 1974, o programa que ali implantamos, serviu de modelo de políticas públicas para o Brasil e alguns países. Em cada população você vai ter de 21 a 25% de hipertensos, você vai ter 10% de diabéticos. Para o enfrentamento da abordagem do hipertenso, eu defendo que a primeira seja de um nutricionista. Em determinadas situações, a prevenção do câncer ou a realização do pré-natal, pode ser feita pelo enfermeiro, não só em relação ao nível primário, mas também ao nível secundário e ao nível terciário de atenção.

08 – Em janeiro deste ano, o governo do DF, publicou decreto criando as Superintendências Regionais de Saúde, que vieram substituir as Coordenações Regionais. O objetivo segundo o governo, era dar maior autonomia aos gestores, com a descentralização da gestão. Pelo o que está sendo tem noticiado diariamente pelos diversos veículos de comunicação, os problemas se agravaram. Não foi apenas troca de nome?

Dr. Walter Gaia – A descentralização política, administrativa e financeira, é uma necessidade para poder dar agilidade no processo da gestão. Na prática eu acho que foi além da troca de nome. Gerou-se um processo em que o superintendente tem uma grande área sob sua responsabilidade, porém sei que na prática esta descentralização de fato ainda não ocorreu. Eu reafirmo que o sistema de saúde do DF tem que ser construído. Não existe mais nenhum desenho dentro do sistema de saúde pública do DF, inclusive na atenção primária. Cada um está fazendo de acordo com o que acha que é o melhor. Os problemas acabam se agravando.

09 – O senhor foi nomeado recentemente como Superintendente da Regional Leste de Saúde, e a poucos dias solicitou exoneração do cargo. O que foi que aconteceu?

Dr. Walter Gaia – Eu convivo com um grupo que tem uma formulação toda própria em termos de saúde, que é de difícil entendimento pelos demais. O primeiro processo da construção de saúde da família, eu estava junto na época de Cristovam Buarque nos anos 90. Existe junto com minha equipe um projeto que nós desenvolvemos em Sobradinho II. Eu conversei com o secretário que aliás foi meu aluno na ESC, em termos da formação de uma equipe, que pudesse fazer frente a uma nova formulação dentro da região leste do DF. Mas eu vejo que todo o processo tem o ideal e o possível. Quando Rollemberg assumiu o governo, ele tinha na sua cabeça o seu secretariado, aquele que achava que fosse o ideal, e teve que escolher através dos acordos políticos. Em razões de natureza política, não foi possível o secretário cumprir com aquele desenho que eu tinha para desenvolver junto com minha equipe. Em virtude disso, resolvi abrir mão do cargo. Tudo foi conversado com o secretário que foi meu aluno. Ele sabe da minha maneira de trabalhar, ele está tentando identificar um nome para poder me substituir. Estou aguardando sair minha exoneração no Diário Oficial.

20160727_09444010 – Como o senhor está vendo as polêmicas em torno dos áudios que foram divulgados pela imprensa, sobre suposta corrupção na saúde, com declarações do vice-governador e da sindicalista Marli Rodrigues?

Dr. Walter Gaia – Eu não vou me furtar a responder à sua pergunta. Como cidadão eu tenho minha opinião, preocupação e um zelo em termos da reputação das pessoas. Marli é uma pessoa que conheço, sei da sua seriedade e da sua idoneidade. Eu vejo que política não é uma questão para amadores. Independentemente do que tenha ocorrido e da responsabilidade da Marli, ela está trazendo muito mais à tona, de algo que partiu do vice-governador. Não só à sociedade, mas ao próprio governador do Distrito Federal, eu acho que quem deve dar explicações, em virtude do cargo que ocupa, é o vice-governador. Como cidadão eu tenho minhas dúvidas se o vice-governador do Distrito Federal, tem competência para ocupar o cargo.

Obs.: Todas as entrevistas do Agenda Capital, são gravadas de pleno acordo com o entrevistado.

Da Redação do Agenda Capital

2 COMENTÁRIOS

  1. Concordo com quase tudo que o médico Walter Gaia falou. Exceto a terceirização da saúde. As” OS”.
    O colega Jeferson de Góes definiu muito bem pra que serve as” OS”. Além disso acrescentaria que será extremamente injusta, política e corrompida a escolha dos funcionários. Vamos todos pedir emprego aos políticos e afins.
    Parabéns mais uma vez pelas matérias, Delmo.
    Abraços!

  2. O doutor Walter Gaia não entende o porquê de se está discutindo se é “OS” ou não?
    Fala sério, um doutor com tal gabarito sabe bem o que são as OS’s, sabe muito bem que essas conversas fiadas para respaldar tal modelo ao final são todas esquecidas, o que fica é um grande esquema de corrupção!
    Não sei o porquê doutores com altíssimos gabaritos, mesmo todos sabendo na integra o que esse modelo de terceirização causa na saúde pública, ainda ficam com essas conversas distorcidas!

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