Plano de governo esquizofrênico de Trump mistura políticas do começo do século 20 à agenda tradicional republicana
Por Luiz Raatz
Donald Trump completa neste ano uma década de dominância na vida política americana. Desde que desceu as escadas douradas da Trump Tower, em 16 de junho de 2015, o magnata deixou a vida de apresentador de reality show para se tornar a figura mais transformadora da política americana desde Franklin Roosevelt. Neste período, foi eleito duas vezes para a presidência, testou os limites da democracia americana ao não reconhecer a derrota em 2020 e reconstruiu o Partido Republicano à sua imagem e semelhança.
Muita gente não reconhece mais o partido de Reagan, Bush e Lincoln no movimento Maga. Reagan e Bush (tanto o pai quanto o filho) defenderam com afinco o livre comércio e um caminho razoável para a legalização de imigrantes nos EUA. Lincoln, se vivesse nos Estados Unidos de hoje, talvez fosse taxado de ‘woke’ por ter proclamado a emancipação dos negros na Guerra Civil.

Um breve panorama histórico
Tanto o Partido Republicano como o Democrata, ambos fundados no século 19, passaram ao longo das décadas por profundas transformações ideológicas. Na aurora da experiência americana, enquanto os democratas eram um partido agrário e ligado à escravidão, os republicanos eram a favor do empreendedorismo e do abolicionismo.
Com a chegada do século 20, ambos os partidos embarcaram na era progressista, que levaria ao direito a voto das mulheres, e à profissionalização da burocracia estatal, fosse com Teddy Roosevelt, fosse com Woodrow Wilson.
É apenas com FDR e o New Deal que os democratas passam a ser associados a um capitalismo reformista de esquerda e os republicanos fincam posição em torno do liberalismo econômico.
Com a ascensão do movimento dos direitos civis, nos anos 60 os democratas se aproximam do eleitorado negro e os republicanos lhes tomam o sul conservador e cristão e passam a defender uma agenda conservadora nos costumes.
Mas nas questões de Estado, dos anos 70 até 2010, o Partido Republicano defendeu basicamente o livre comércio, menos regulação, menos impostos, uma política externa pragmática e alguma flexibilização na agenda migratória, sobretudo com Reagan e George W. Bush. E então veio Trump.
Esquizofrenia governamental
A agenda Maga é uma espécie de miscelânea de elementos do isolacionismo dos anos 20 no comércio com a agenda mais tradicional republicana de menos Estado. Trump quer cortar impostos, melhorar o ambiente de negócios e manter a hegemonia americana, mas também retoma o protecionismo, o nativismo e o isolacionismo do entreguerras. O resultado é um plano de governo esquizofrênico.
Desde a posse em janeiro, Trump menciona a era dourada, o período imediatamente anterior à era progressista, marcada pela ascensão do capitalismo desenfreado dos ‘robber barons’ (os ‘barões gatunos’, termo pejorativo usado para definir industriais multimilionários) e do imperialismo que levou os EUA a adquirir o Alasca, o Canal do Panamá e Porto Rico.
Trump costuma exaltar o fato de que na era dourada não havia cobrança de imposto de renda e o governo americano arrecadava dinheiro por meio de tarifas. É verdade. O imposto de renda foi criado em 1913, por Woodrow Wilson, dentro da lógica da era progressista de colocar algum controle na desigualdade produzida pela Segunda Revolução Industrial.
O que o presidente convenientemente prefere omitir é: na época, o Estado americano era infinitamente menor do que é hoje. No século 19, o governo federal tinha muito pouco alcance e as poucas estruturas existentes eram loteadas por politicagem.
Corte de impostos e aumento de tarifas
Mas o amor de Trump pela era dourada é compreensível. Não pagar imposto de renda deve ser o sonho de qualquer bilionário. Impostos sobre a renda são progressivos. Quanto mais você ganha, mais você paga. É por isso que as alíquotas incidem conforme a faixa salarial de quem é cobrado.
Tarifas são impostos regressivos sobre o consumo. A mesma alíquota é cobrada de todo mundo. Como os mais pobres gastam mais proporcionalmente com aquilo que compram perante o que ganham, pagam mais imposto do que os ricos, que gastam menos com consumo.
No seu primeiro mandato, Trump aprovou um corte de impostos, que expira neste ano, e diminuiu as alíquotas de imposto de renda para a maioria dos americanos, com descontos maiores para os mais ricos e barateou o imposto corporativo cobrado de grandes empresas.
Segundo um estudo do Congresso americano, com a lei, os mais ricos pagam 1% menos de imposto, e os mais pobres, até 26,6% a mais, ao custo de US$ 3 trilhões em dez anos para o Orçamento federal.
Já as tarifas de Trump anunciadas até agora, segundo um estudo do Yale Budget Lab, custarão 4,7% do orçamento médio anual de uma família americana, que é de US$ 100 mil. Para quem ganha US$ 1 milhão por ano, as tarifas afetarão apenas 0,47% dessa renda. Um bilionário, como Elon Musk ou o próprio Trump, pagaria 0,047%.
Imprimindo dinheiro
Trump diz que as tarifas, os esforços de Elon Musk para diminuir o tamanho do Estado americano e o fim da ajuda militar e humanitária a países aliados vão servir para pagar essa conta. Embora o governo diga que vai arrecadar US$ 700 bi por ano com as tarifas, as estimativas atuais projetam 10% disso. Musk prometeu cortar US$ 1 trilhão e cortou US$ 150 bi. Diante disso, o Congresso já estima que terá de financiar os cortes com base na ampliação do déficit. Ou seja, imprimindo dinheiro.
Se os Estados Unidos fossem um país latino-americano, já estariam pedindo penico na porta do FMI diante desse descalabro fiscal. Mas ser a maior potência do mundo tem suas vantagens. A dos americanos é o chamado privilégio exorbitante do dólar.
Como os EUA são há 80 anos a maior potência econômica e militar do planeta, sua moeda é o ativo mais seguro que existe. Todo mundo negocia e poupa em dólares. E como o lastro do dólar é a própria projeção de poder da superpotência, os EUA jamais terá um problema de balança de pagamentos. Eles podem simplesmente imprimir dinheiro e se endividar.
Mas esse privilégio exorbitante tem consequências. Como a procura por dólar é grande, seu valor é muito maior que o das outras moedas. Logo, nos EUA é muito mais barato importar do que exportar.
Por isso, o déficit comercial americano é consequência da hegemonia do dólar. E é também por isso que faz sentido os americanos defenderem o livre comércio desde o fim da 2ª Guerra. Um mundo sem barreiras comerciais fortalece o dólar. E os países exportadores que poupam em dólar reinvestem esses recursos em títulos da dívida americana, financiando esse déficit, e permitindo que a roda militar e econômica dos Estados Unidos siga girando.
O plano inviável de Trump
Trump quer, ao mesmo tempo, manter a hegemonia do dólar e impedir a ascensão da China, e desvalorizá-lo para manter o apoio de sua base eleitoral de órfãos do auge industrial da América. Isso é o equivalente geopolítico a torcer para Palmeiras e Corinthians ao mesmo tempo.
Seus principais assessores econômicos tentaram bolar um plano para viabilizar essa estratégia. Um deles, Stephen Miran, escreveu um artigo ainda no ano passado no qual descreve os ‘acordos de Mar-a-Lago’. A ideia de Miran é impor tarifas aos parceiros comerciais americanos para convencê-los a negociar acordos favoráveis com os EUA. Quem topar, consegue benefícios econômicos e militares em troca do alívio de tarifas e do refinanciamento da dívida pública americana. Quem não aceitar, é submetido a tarifas que diminuirão o déficit fiscal americano.
A ideia não é exatamente nova. Ronald Reagan fez algo mais ou menos similar nos anos 80, quando Alemanha Ocidental e Japão estavam avançando industrialmente na comparação com os americanos.
O problema é: ao contrário do que Miran sugere, Trump implementou tarifas muito altas, sem nenhuma transição e com um nível de incerteza que gerou pânico nos mercados. Além disso, o grau de interligação da economia de hoje torna uma reindustrialização muito mais complexa e as tarifas muito mais penosas. Por fim, o risco de gargalos logísticos é tremendo.
O dólar em xeque
A consequência disso é que o dólar está perdendo credibilidade. Investidores estão fugindo dos títulos da dívida americana. Os principais credores desses ativos, China e Japão, estão entre os principais alvos das tarifas e podem optar por vender ao menos uma parte dele como ferramenta de pressão.
Desde janeiro, o dólar americano caiu mais de 9% em relação a uma cesta de moedas importantes. Os juros dos papéis do Tesouro americano, que Miran previa que caíssem já que o tumulto provocado pelas tarifas levariam a uma corrida a ativos seguros, estão subindo.
Como disse a revista The Economist, essa combinação de rendimentos em alta e moeda em queda é um sinal de alerta: se os investidores estão fugindo mesmo com os retornos em alta, deve ser porque acham que os Estados Unidos ficaram mais arriscados.
Os EUA ainda detêm o Exército mais poderoso do mundo, o controle sobre o sistema financeiro por meio do dólar e o sistema de pagamentos Swift. Mas os sinais estão aí.
A China é um rival cada vez mais forte. Seu Exército e seu arsenal nuclear crescem, sua indústria é a mais poderosa do mundo e o volume de sua inovação tecnológica vem ganhando cada vez mais força. Pequim conta ainda com duas vantagens perante os americanos: um mercado consumidor maior e uma mão de obra mais barata.
Trump não vai conseguir tirar as indústrias da Ásia para que elas gerem empregos nos EUA, onde a população envelhece e a mão de obra é cara. Ele corre o risco de ficar sem matérias primas cruciais para os produtos de maior valor agregado do século 21, depois que Xi Jinping restringiu o acesso americano a terras raras e minerais críticos.
Se no alto valor agregado o cenário é complexo, nas indústrias e baixo valor a situação não é diferente. Dificilmente a Nike vai sair de Bangladesh para produzir camisetas na Carolina do Norte, e mesmo que o fizesse, quem aceita trabalhar por um salário baixo nos EUA estão sendo deportados de lá por Trump como se fossem animais.
Diante de tanta incerteza, a confiança no dólar, que nada mais é que a confiança na hegemonia americana, diminui a cada dia.
O tempo corre contra Trump.
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Com informações do Estadão