O presidente dos EUA, Donald Trump, faz observações durante o jantar do Comitê Nacional Republicano no Museu Build, em Washington: retorno ao passado Foto: Eric Lee / The New York Times

A marca registrada de Trump apela para um passado idílico, um passado em que a ‘América foi grande’, para prometer que agora ela será de novo. Qual passado é esse?

Por Filipe Figueiredo

O slogan “Make America great again”, “Faça a América grande de novo”, é a grande marca registrada de Donald Trump. Do ponto de vista de uma campanha eleitoral, é um ótimo slogan. Em apenas quatro palavras são delineadas as prioridades do presidente dos EUA.

O seu país é a “América”. Ele irá combater a suposta decadência desse país, e trará de volta os “velhos tempos”, “grande de novo”. Sob outros pontos de vista, é uma frase bastante problemática. No mundo material, esse slogan trouxe instabilidade, a névoa de uma guerra comercial global e trilhões de dólares em prejuízos.

A marca registrada de Trump apela para um passado idílico, um passado em que a “América foi grande”, para prometer que agora ela será de novo. Qual passado é esse, entretanto? Trump nasceu no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. É, então, nos cortes geracionais de seu país, um “boomer”, alguém nascido durante o baby boom da Europa Ocidental e da América do Norte nos anos depois da guerra, um período marcado pela euforia da vitória e pelo otimismo com a economia, incentivada pela reconstrução da guerra, pela expansão da força de trabalho e, na Europa, pelo estabelecimento do Estado de bem-estar social.

Claro que, nas nuances do debate político dos EUA, isso inclui outros fatores. Por exemplo, até 1964, o país era segregado racialmente até na força da lei. O fato é que Trump, a pessoa mais velha ao tomar posse do cargo de presidente dos EUA, enxerga o mundo como um boomer.

Sua ideia de progresso econômico é de uma Segunda Revolução Industrial higienizada pelas pinturas patrióticas de Norman Rockwell: fábricas com enormes chaminés, trabalhadores em linhas de montagem ou sentados em vigas de aço, almoçando de uma lancheira que foi preparada por uma dona de casa de vestido de bolinhas e criando seis filhos.

Uma das razões pelas quais ficamos tristes quando um artista que apreciamos morre é pela sensação de que um pedacinho do “nosso mundo” se foi. O mundo que conhecemos, que apreciamos, que nos moldou. Claro que é possível, e necessário, nos atualizarmos e nos mantermos atuais, mas sempre existirá o ideal de “nosso mundo”. Progressivamente, entretanto, ele deixa de existir, e essa fantasia idílica se mantém apenas em nossa cabeça. Um dos elementos da frequente e sedutora romantização do passado, “antigamente é que era bom”. O passado oferece certezas e conforto.

O mundo de Trump não existe mais, mas ele age de acordo como se fosse o caso, levando a maior economia do mundo e maior potência militar que ele preside junto consigo nesse abismo de dissonância cognitiva.

Ao impor tarifas comerciais gerais e indiscriminadas ele simplesmente ignora a realidade de seu país, o conhecimento econômico estabelecido e o cenário global.

Não ache o leitor que essa interpretação sobre as visões e posturas de Trump foi gerada pela imaginação do colunista. Algumas passagens do livro Medo: Trump na Casa Branca, de Bob Woodward, publicado em 2018, parecem proféticas hoje.

Na coluna anterior de nosso espaço, tratamos das reações que outros países terão, antes mesmo das tarifas terem sido implementadas. Tais tarifas de Trump, as maiores de seu país em mais de cem anos, não possuem lógica alguma, sob nenhuma ótica.

Prejudicam o papel central que a economia dos EUA possui, sendo o país o grande arquiteto da atual ordem econômica internacional. Criam desconfiança e afastam parceiros. Causarão um choque que, quando passar, deixará os EUA em posição pior do que ocupava anteriormente, tudo por caprichos ideológicos de um homem deslocado no tempo.

No futuro, podemos desmentir aqui cada uma das possíveis “estratégias” do tarifaço generalizado de Trump. Para condensar o texto e o tempo do leitor, um mero exemplo que ilustra a tolice dessa política para os crentes de alguma suposta grande estratégia. Tudo indica que as tarifas foram calculadas utilizando plataformas de inteligência artificial, com o cálculo simplista de tomar o déficit comercial com cada país, dividido pela quantidade de bens importados pelos EUA, dividindo-se o resultado por dois. Os países mais prejudicados foram países pobres que exportam muito e compram pouco dos EUA.

Historicamente, a economia dos EUA se beneficia do trabalho pouco remunerado e explorado desses países mais pobres. É o caso da ilha de Madagascar, que sofrerá pesadas tarifas de 47%. As principais exportações madagascarenses são especiarias, especialmente baunilha. O detalhe é que a geografia dita que é impossível o cultivo de baunilha no território continental dos EUA, com apenas uma pequena produção no Havaí. O preço será pago pela indústria alimentícia dos EUA, viciada em baunilha. Nenhum emprego industrial vai voltar, nem a guerra comercial com a China será vencida. “Make America great again”, mas sem baunilha.

Com Estadão

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