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Enquanto hospitais sofrem com falta de profissionais, Conselho Federal de Medicina barra cerca de 15 mil admissões

Por Diego Junqueira

“Procuramos médicos, mas está complicado encontrá-los”, diz Nivaldo Antônio Ceron, diretor do Hospital São Sebastião, em Treze de Maio, no interior de Santa Catarina. Ele conta que há momentos em que o hospital não tem médicos nos plantões, mesmo com pacientes internados com covid-19. “Nossa situação é bastante caótica”.

O desabafo do diretor hospitalar resume um problema vivido em outras partes do Brasil. Enquanto o país atravessa o pior momento da pandemia, gestores têm dificuldades para contratar médicos não só para UTIs, mas também para outros atendimentos da população, inclusive na linha de frente da pandemia.

Apesar disso, o país ignora os cerca 15 mil profissionais que vivem no Brasil, mas não podem trabalhar porque se formaram no exterior e não revalidaram o diploma. Eles poderiam ser uma solução para ao menos aliviar o colapso do sistema de saúde, mas a alternativa esbarra no corporativismo das entidades médicas e na lentidão do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

A legislação permite que médicos com diploma estrangeiro trabalhem no SUS por meio do Mais Médicos, programa criado em 2013 para garantir profissionais nas periferias dos grandes centros e em cidades pequenas do interior. Porém, o Ministério da Saúde não abre novas vagas para esses profissionais desde maio de 2019.

No ano passado, apenas cubanos foram autorizados a voltar ao programa, com a reincorporação de 1.000 dos mais de 8.000 que trabalhavam até 2018 – quando Cuba suspendeu a parceria, após Bolsonaro exigir a revalidação dos diplomas cubanos e a contratação individual dos médicos.

Uma segunda alternativa seria a prova de revalidação dos diplomas, o Revalida, mas o Ministério da Educação não realiza o exame completo desde 2017. O último teste começou em dezembro de 2020, mas concluiu-se apenas a primeira etapa (teórica) e não há data para a prova prática. Uma lei de 2019 exige a aplicação a cada seis meses, o que nunca foi cumprido.

Com a urgência da pandemia, prefeituras, governos estaduais e órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) passaram a recorrer à Justiça para que sejam autorizadas contratações emergenciais desses profissionais. Mas o esforço tem sido inútil, pois todas as decisões favoráveis caíram na segunda instância, a pedido do Conselho Federal de Medicina e das entidades médicas regionais, impedindo as contratações.

“Por que não lançar mão de profissionais habilitados que já estão no país, ociosos e disponíveis para trabalhar de imediato? Enquanto isso, a população fica sem atendimento? É um contrasenso”, afirma Fábio de Oliveira, procurador regional substituto dos Direitos do Cidadão do MPF em Santa Catarina.

Ele ajuizou ação contra o governo estadual e a União para que seja zerada a fila de espera por UTI no estado – atualmente em 360 pessoas. Ele questiona a lentidão do governo, já que a lei permite a contratação de médicos sem o revalida por meio do Mais Médicos. “Há possibilidade de a União entregar isso de maneira célere”, afirma, citando como exemplo a contratação rápida de profissionais no Amazonas, em janeiro.Médicos ligados a sindicatos e associações de especialistas disseram à Repórter Brasil que médicos com diploma estrangeiro não representam uma solução para a escassez de profissionais em UTIs, já que em geral estão no começo da carreira e não costumam ter experiência nessa especialidade. No entanto, alguns eventualmente podem ter experiência em UTI ou poderiam atuar em outras frentes da pandemia, como nos casos menos graves.

O Ministério da Saúde lançou novo edital do Mais Médicos em março com 2.900 vagas, mas somente para profissionais formados no Brasil ou com diploma revalidado. Em 2017, o programa chegou a ter 18.240 médicos, dos quais 8.671 eram cubanos. Hoje, em meio a pandemia, são 15.370 profissionais. Ao todo o Brasil tem 500 mil médicos em atividade.Para o procurador de Santa Catarina, o edital de março é um “deboche”, já que prevê apenas 92 vagas para o estado, enquanto ele calcula que seriam necessárias 296.

Procurado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde disse que lançou editais do Mais Médicos tanto para prorrogar a adesão de profissionais que já estavam no programa como para contratar novos. A pasta diz que o último edital priorizou quem tem diploma brasileiro ou revalidado, pois os médicos com diploma estrangeiro “precisariam passar por análise de documentos de outros países, além de participar do Módulo de Acolhimento e Avaliação, o que levaria mais tempo para preencher as vagas”. Sobre o pedido do MPF em Santa Catarina, a pasta disse que vai se manifestar à Justiça.

MIL CURRÍCULOS EM 3 DIAS

Além de Santa Catarina, a Repórter Brasil identificou ações judiciais para facilitar e acelerar a contratação de médicos na pandemia em outros nove estados: Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Sergipe, Bahia, Acre, Pará, Amazonas e Roraima.

Em São José do Norte, cidade gaúcha de 27 mil habitantes, uma unidade de saúde especializada em Covid-19 está fechada por falta de profissionais e não há médicos para todos plantões do hospital municipal. Após a Justiça autorizar, em março, a contratação de médicos sem diploma revalidado, a prefeitura recebeu mais de mil currículos em três dias. Mas o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul cassou a contratação no tribunal.

O Consórcio Nordeste, com nove governadores da região, tentou montar em 2020 uma brigada de médicos sem diploma revalidado para atuação na atenção básica, com supervisão de outros profissionais. Porém, foi impedido pela Justiça, a pedido do CFM. Após o episódio, Maranhão e Bahia iniciaram seus próprios processos de revalidação de diplomas.

No ano passado, a DPU em São Paulo também entrou na Justiça Federal para autorizar contratações, mas a ação foi negada após pedido do CFM.

Em Roraima, o Conselho Regional de Medicina impediu na Justiça a contratação de médicos sem o revalida. Em outra ação, a prefeitura de Boa Vista pediu que a União realizasse o Revalida, já que o exame de 2020 não contemplou o município. A Justiça autorizou o pedido, que deve ser atendido em 60 dias. “A escassez de médicos no Norte é complicada, precisamos principalmente de clínico geral e médicos especialistas. Temos 20 vagas que não conseguimos preencher”, diz o procurador-geral do município, Flávio Grangeiro.

O Conselho Federal de Medicina não respondeu aos contatos da Repórter Brasil. Já o presidente do conselho de Santa Catarina, Daniel Ortellado, disse que “é temerária e ilegal a contratação de profissionais que não se submeteram ao exame do Revalida”, já que não se pode garantir que eles “possuem, de fato, conhecimento técnico médico”.

O Ministério da Educação não comentou o atraso na aplicação das provas do Revalida.

‘O BRASIL ESTÁ PRECISANDO’

A declaração do diretor do Hospital Treze de Maio foi incluída em uma ação que um médico cubano moveu contra o Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina. Luis José Moreno, 47, pede à Justiça que a entidade não exija a prova da revalidação, para que ele possa atuar enquanto durar a pandemia.

Pediatra, Moreno tem 21 anos de profissão, sendo oito na organização Médicos Sem Fronteira, quando realizou cursos de atendimento em emergência e UTI. No Brasil, ele atuou por três anos no Mais Médicos. A Justiça concedeu liminar para que o CRM autorize sua atuação. O conselho, porém, recorreu à 2ª instância, onde decisão semelhante já foi derrubada.

No ano passado, Moreno foi contratado pelo governo do Pará e atuou de maio a novembro no hospital de campanha de Marabá, em equipes que tinham também médicos com o registro do CRM. “Trabalhava 24 horas e descansava 24 horas. Era esgotador.”

O estado chegou a contratar mais de 400 médicos cubanos para hospitais de campanha e unidades básicas de saúde, mas o Conselho Federal de Medicina conseguiu na Justiça fazer com que eles fossem demitidos, incluindo Moreno.

O cubano está participando do Revalida 2020 e diz que recorreu à Justiça porque lamenta não poder ajudar, enquanto vê o Brasil mergulhado no colapso hospitalar. “Me formei não para ser rico, mas para ajudar o próximo, e hoje a população do Brasil está precisando. Deveriam entender que os médicos formados no exterior podem ajudar”.

Com informações da Folha

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