Uma das ruas mais movimentadas da cidade de Porto, em Portugal. Foto: Delmo Menezes / Agenda Capital.

País virou modelo internacional ao abraçar política focada na redução de danos. Mais de 20 anos depois, modelo apresenta problemas 

Por Anthony Faiola e Catarina Fernandes Martins

PORTO, Portugal – O vício assombra a antiga cidade portuguesa. Pessoas com mãos magras e desajeitadas colocam cachimbos de craque na boca e aplicam seringas na veia. As autoridades fecham becos com barras de ferro e cercam parques para impedir a propagação de acampamentos. Uma mentalidade de cerco está se enraizando em nas áreas com condomínios caros e casas multimilionárias.

Portugal descriminalizou todo o uso de drogas, incluindo maconha, cocaína e heroína. O experimento inspirou esforços semelhantes em outros lugares, mas agora a polícia está culpando o aumento do número de pessoas que usam drogas pelo aumento da criminalidade.

A polícia do Porto aumentou as patrulhas nos bairros tomados pelo uso de drogas. Mas, com as leis existentes, não há muito que se possa fazer. Em uma tarde, um homem magro com calças listradas, que dormia em frente a um centro para usuários de drogas financiado pelo estado acordou com uma patrulha de quatro policiais. Ele se sentou e, de modo desafiador, começou a montar seu cachimbo de crack. Os oficiais seguiram em frente, balançando a cabeça.

Portugal virou um modelo para legislações progressistas de descriminalização das drogas em todo mundo, como no estado de Oregon, mas agora o que se fala é na fadiga. A polícia está menos motivada a registrar pessoas que abusam de drogas e há anos de espera por tratamento de reabilitação financiado pelo estado, mesmo com a queda drástica do número de pessoas que procuram ajuda. A volta do uso visível de drogas nas cidades, enquanto isso, leva algumas pessoas um questionamento explosivo: é hora de reconsiderar o modelo de drogas deste país aclamado globalmente?

“Hoje em Portugal é proibido fumar fora de uma escola ou de um hospital. É proibida a propaganda de sorvetes e balas de açúcar. E, no entanto, é permitido que [as pessoas] estejam lá, a injetar drogas”, disse Rui Moreira, prefeito do Porto. “Nós normalizamos isso.”

Reavaliando a política de drogas

A produção de cocaína está em alta global. As apreensões de anfetaminas e metanfetaminas explodiram. A pandemia aprofundou os fardos pessoais e fomentou o aumento do uso. Só nos Estados Unidos, as mortes por overdose, alimentadas por opioides e fentanil sintético mortal, passaram de 100.000 em 2021 e 2022 – é o dobro em relação a 2015. De acordo com o Instituto Nacional de Saúde, 85% da população carcerária dos EUA tem um transtorno por uso de substâncias ativas ou foi preso por um crime envolvendo drogas ou uso de drogas.

Assistentes sociais fazem trabalham na política de redução de danos.  Foto: Demetrius Freeman / The Washington Post

Do outro lado do Atlântico, na Europa, Portugal parecia ter uma resposta. Em 2001, o país descartou anos de políticas punitivas e adotou a redução de danos ao descriminalizar o consumo de todas as drogas para uso pessoal, incluindo a compra e posse de suprimentos para 10 dias. O consumo permanece tecnicamente contra a lei, mas em vez de prisão, as pessoas que abusam de drogas são registradas pela polícia e encaminhadas para “comissões de dissuasão”. Para as pessoas mais problemáticas, as autoridades podem impor sanções, incluindo multas e recomendar tratamento. A decisão de participar é voluntária.

Outros países também passaram a canalizar os delitos de drogas para fora do sistema penal. Mas nenhum na Europa institucionalizou mais essa rota do que Portugal. Em poucos anos, as taxas de transmissão do HIV por meio de seringas – um dos maiores argumentos para a descriminalização – despencaram. De 2000 a 2008, a população carcerária caiu 16,5%. As taxas de overdose caíram à medida que os fundos públicos fluíam das prisões para a reabilitação. Não houve evidência de um temido aumento no uso.

“Nada do desfile de horrores que aqueles contrários à descriminalização em Portugal previram, e que os contrários à descriminalização em todo o mundo normalmente invocam, aconteceu”, afirmou um relatório histórico do Cato Institute em 2009.

Mas, pela primeira vez desde que a descriminalização foi aprovada, algumas vozes portuguesas agora pedem que se repense uma política que por muito tempo foi motivo de orgulho nacional.

Uma pesquisa nacional recém-divulgada sugere que a porcentagem de adultos que usaram drogas ilícitas aumentou para 12,8% em 2022, acima dos 7,8% em 2001, embora ainda abaixo da média europeia. A prevalência de consumo de opiáceos de alto risco em Portugal é superior à da Alemanha, mas inferior à da França e da Itália. Mas mesmo os defensores da descriminalização aqui admitem que algo está errado.

As taxas de overdose atingiram o máximo em 12 anos e quase dobraram em Lisboa de 2019 a 2023. Amostras de esgoto em Lisboa mostram que a detecção de cocaína e cetamina está agora entre as mais altas da Europa, com taxas elevadas de fim de semana sugerindo uso intenso em festas. No Porto, a coleta de detritos relacionados a drogas nas ruas da cidade aumentou 24% entre 2021 e 2022, com este ano a caminho de superar e muito o anterior. O crime – incluindo roubo em espaços públicos – aumentou 14% de 2021 a 2022, um aumento que a polícia atribui em parte ao aumento do uso de drogas.

‘O que acontece quando a polícia sai?’

Em um bairro de elegantes casas de dois andares com cercas vivas de rosas e hibiscos, os vizinhos falam de uma “invasão” de pessoas usando drogas desde a pandemia.

Nos últimos 18 meses, um acampamento de drogas surgiu abaixo de uma escola. Mais casas foram assaltadas. Uma vizinha disse que encontrou uma pessoa, nua da cintura para baixo, atirando do lado de fora do portão de sua casa. Outra teve sua roupa roubada três vezes. Os moradores lançaram vigilantes de bairro no estilo americano e contrataram segurança privada – algo extremamente raro na Europa. A polícia se deslocou com força para a área há três meses para reprimir os traficantes, que podem ser e estão sendo presos. Carros de patrulha estão estacionados no bairro 24 horas por dia, dispersando as pessoas que usam drogas.

“Mas por quanto tempo?” disse Rui Carrapa, um dos fundadores da associação de moradores Jardim Fluvial Livre de Drogas. “Temos que fazer algo com a lei. Sabemos que eles não podem ficar aqui para sempre. O que acontece quando a polícia sai?”

O prefeito do Porto e outros críticos, incluindo grupos ativistas de bairro, não estão pedindo uma revogação total da descriminalização – mas sim uma recriminalização limitada em áreas urbanas e perto de escolas e hospitais para lidar com o número crescente de pessoas que usam drogas. Em um país onde a política de drogas é vista como sagrada, até isso gerou resistência. Quase 200 especialistas assinaram uma carta de oposição depois que a comissão municipal do Porto aprovou em janeiro uma resolução buscando mudanças em nível nacional.

Redução de investimentos

Especialistas argumentam que a política de drogas focada na prisão ainda é mais prejudicial à sociedade do que a descriminalização. Embora os resultados decrescentes aqui apontem fragilidade dos benefícios da descriminalização, eles sugerem como o financiamento e o incentivo aos programas de reabilitação diminuíram. O número de usuários encaminhados para tratamento de drogas em Portugal, por exemplo, caiu drasticamente, passando de um pico de 1.150 em 2015 para 352 em 2021, o último ano disponível.

João Goulão — chefe do Instituto Nacional do Consumo de Drogas de Portugal e arquitecto da descriminalização — admitiu à imprensa local em Dezembro que “o que temos hoje já não serve de exemplo a ninguém”. Em vez de culpar a política, no entanto, ele culpa a falta de financiamento.

Depois de anos de crise econômica, Portugal descentralizou sua operação de supervisão de drogas em 2012. Uma queda de financiamento de 76 milhões de euros (US$ 82,7 milhões) para 16 milhões de euros (US$ 17,4 milhões) forçou a principal instituição de Portugal a terceirizar o trabalho anteriormente feito pelo estado para grupos sem fins lucrativos, incluindo as equipes de rua que se envolvem com pessoas que usam drogas.

Vinte anos atrás, “tivemos bastante sucesso em lidar com o grande problema, a epidemia do uso de heroína e todos os efeitos relacionados”, disse Goulão em entrevista ao The Washington Post. “Mas tivemos uma espécie de desinvestimento, um congelamento na nossa resposta… e perdemos alguma eficácia.”

Com Estadão 

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