Foto: Reprodução

No dia da Saudade, conversamos com pessoas que perderam entes queridos durante a pandemia. Em homenagem aos familiares, entrevistados recordam os momentos de alegria e contam como fazem para conviver com a ausência de quem partiu

Por Redação 

Ao entrar em casa, a lembrança dele está em todos os cantos: nos retratos, no quarto, na cama. Celia Maria Rodrigues, 56 anos, moradora de Sobradinho 2 e comerciante, confessa que ainda lida com a falta constante do marido. “A dor e a saudade estão comigo o tempo todo. Eu posso ficar deitada com elas ou posso levá-las para trabalhar comigo, para ir à academia, para sair. É assim que faço, vou levando a minha saudade para onde vou”, declara, emocionada, ao falar do esposo. Neste dia 30, em que no Brasil se comemora o dia da Saudade, Celia não é a única a sentir esse aperto no peito: no DF, mais de 11 mil vidas foram perdidas para a covid-19, além das vítimas de outras doenças ou fatalidades.

A morte do esposo de Celia, Edson Caixeta da Silva, 55 anos, completou nove meses no último domingo. Ele ficou internado no hospital junto com a esposa, mas não resistiu às complicações do novo coronavírus. Em casa, Celia guarda as recordações dos mais de 35 anos vividos ao lado do esposo. “Tenho a primeira carta que ele me escreveu com um mês de namoro”, conta. A moradora de Sobradinho confessa que “o jeito é tentar trabalhar para preencher a cabeça, porque senão fico muito mal. O que me levanta é o trabalho. Mas a saudade dele existe o tempo todo. A gente passava o dia inteiro juntos, até hoje não consigo dormir no nosso quarto. Pego as minhas cobertas e venho para o sofá da sala. Só uso o quarto para me arrumar e trocar de roupa”.

A esposa de Edson garante que ele faz falta não apenas para ela. “Tem clientes que até hoje me mandam palavras de conforto e outros, que quando souberam o que tinha acontecido, passaram mal. Teve cliente que desmaiou na portaria e que eu tive que dar água com açúcar e uma cadeira para ele se sentar. Meu marido deixou um legado muito bonito. Ele me fez uma mulher”, pontua.

Psicóloga e autora do livro Macromicro, a Ciência do Sentir, Beatriz Breves destaca que os sentimentos não estão isolados. “Os sentimentos não andam sozinhos. A saudade pode estar acompanhada da tristeza, da gratidão ou da raiva, por exemplo. É como se fossemos uma grande orquestra, um sentimento é o que damos destaque, mas os outros estão tocando e participando desse momento. Na saudade, podemos agregar o luto, que demanda tempo para ser vivido, o que é natural”, pontua.

A especialista destaca que o sentimento da saudade pode vir casado com o de gratidão “pela pessoa ter existido na vida dela, ou de revolta, de mágoa, de não aceitação, como se não fosse possível construir um futuro dali para frente”. “No caso da saudade por distância, que também foi vivida na pandemia, as pessoas tiveram a oportunidade de utilizar os recursos da tecnologia, como WhatsApp, vídeo chamada e outros meios. É uma forma que minimiza a falta, embora não seja a mesma coisa de estar presente”, afirma.

Beatriz defende que é possível conseguir elaborar um “casamento” melhor para a saudade do que o da raiva ou da mágoa, no caso do luto, por exemplo. “A primeira coisa que a pessoa deve fazer é olhar para dentro de si, pois temos um mundo de sentimentos que não costumamos prestar atenção. Dentro de nós, temos que buscar o sentimento de aceitação e reconhecer os demais sentimentos de generosidade e gratidão, pescar esses sentimentos e investir neles, para que possam crescer”, detalha. Na avaliação da psicóloga, “a saudade é a memória viva do que passou dentro da gente, é como se ela eternizasse o momento no presente”.

Ausência

Para a família Rodrigues, os almoços e encontros também são marcados pela saudade. “Meu irmão era uma das pessoas mais engraçadas da família, então, ficou esse vazio. Ele era o mais animado nos churrascos, gostava de brincadeiras, era muito alegre. Essa alegria (dele) faz muita falta. Querendo ou não, ficou o vazio desse movimento de vida. Em todo momento que a gente se reúne, há essa falta da alegria que ele trazia”, conta Waldelice Rodrigues, 35 anos, moradora de Samambaia e supervisora de estágio.

O irmão de Waldelice, Francisco dos Santos, 42 anos, foi uma das vítimas da covid-19 em 2020. “Ele ficou internado em junho. No começo, meu irmão achou que fosse uma gripe, mas ele não estava melhorando e tossia muito. Quando foi para a UPA (unidade de pronto atendimento) de Samambaia, fez o teste (de covid-19) e deu positivo. O médico já decidiu deixá-lo internado, porque a saturação estava baixa. Nos dias seguintes, como ele não melhorava, o médico conversou com ele e disse que precisaria intubá-lo. Nesse momento, a equipe pediu para ele telefonar para a família e ele ligou para a esposa dele. Foi o momento de despedida”, lembra.

Waldelice relata que a voz dele estava muito fraca, e que depois de intubado, ele foi encaminhado para o Hospital Regional de Santa Maria. “Ficou em torno de 13 a 14 dias intubado. Recebíamos, por volta de 16h ou 17h, ligação do hospital falando do quadro dele. Até que ele não resistiu. Ninguém acreditava que isso fosse acontecer porque ele era novo e saudável. Ele faz muita falta, para nós e para meu pai”, afirma.

No entanto, não foi somente a covid-19 que levou pessoas queridas. Ana Cecília Casada, 22 anos, cozinheira e moradora do Jardim Botânico, perdeu um tio, há duas semanas, por complicações cardíacas. “Ele morava na Bahia e, em geral, a gente estava acostumado com essa distância, mas nessas horas percebemos como seria bom poder abraçar nossos familiares nesse momento difícil. Em novembro, um outro tio meu teve um AVC (acidente vascular cerebral) e também morreu. Ele morava no DF e vários familiares vieram no enterro, mas, ao mesmo tempo, tinha a questão da pandemia. Então, mesmo que todo mundo estivesse triste, com vontade de se abraçar e se consolar, não podíamos arriscar fazer aglomeração por conta da covid-19”, destaca.

Devido à crise sanitária, Ana Cecília reduziu as visitas à avó, de 63 anos. “Ela é diabética, já teve AVC e tem asma. Então, precisamos tomar cuidados a mais. O que ajuda é a internet, que acaba possibilitando que a gente converse com as pessoas que estão longe, como os meus familiares da Bahia, que antes eu visitava todo fim de ano, e que desde que começou a pandemia eu não fui mais vê-los. No entanto, o sentimento de solidão existe. Também a saudade dos amigos, a gente fica sem saber como será a dinâmica de um reencontro, de uma reaproximação, porque, querendo ou não, são dois anos que mudou a forma como vivemos”, pontua.

Apoio

O sentimento de ser acolhido e estar próximo dos familiares, de acordo com a psicóloga da unidade de terapia intensiva (UTI) adulto do Hospital de Base, Cibelle Antunes, é importante para a recuperação dos pacientes. “A pessoa que está internada em uma unidade de terapia intensiva tem a necessidade de ligação com quem ela ama. Quando elas começam a despertar, desejam a presença da família, assim como a família quer se manter perto, para manter o vínculo. Nem paciente nem família gostaria de sentir essa distância, essa saudade”, destaca.

Contudo, devido ao Sars-CoV-2, a permanência de familiares foi reduzida nas unidades. “Agora que estávamos voltando com a visitação, o que pode mudar novamente com a nova onda de casos (da covid-19). Mas sabemos que é muito difícil para a família e o paciente esse hiato de ligação. Às vezes, a pessoa internada começa a duvidar que a família está visitando ela. Por isso, a gente fala o nome dos familiares, coloca na frente do leito fotografias dos filhos, parentes e amigos. Todas são estratégias que minimizam o afastamento e a saudade”, explica.

A equipe de psicólogos da UTI costuma perguntar o que os internados gostam: como times de futebol e quais músicas eles escutam. “A gente coloca a música para tocar quando vai cuidar do paciente e pedimos para a família conversar com eles, mesmo que estejam sedados ou em coma, para que eles tenham a sensação boa de ouvir uma voz familiar. Nos momentos difíceis, a gente quer um apoio e uma familiaridade com o que já conhecemos. Isso faz toda a diferença”, garante.

Homenagem

“Esse é um momento muito difícil para muitas pessoas, pois vivemos um luto coletivo. Por mais que exista a vacina — o que garante menos mortes — os óbitos ainda ocorrem. E ainda temos a dor de mais de 600 mil famílias que perderam seus entes queridos. Além disso, o processo de luto é individual, por isso, é importante que a pessoa não se sinta cobrada, não pense que já faz determinado número de meses e ela ainda se sente triste. Há momentos que é possível retomar a vida cotidiana e há outros que fica mais difícil. No entanto, é necessário falar sobre essa dor e ser acolhido pelos familiares. Não ajuda nada amigos que pedem para a pessoa não pensar mais naquilo, pois o processo de olhar para frente não pode acontecer se a pessoa negar o luto. Uma recomendação é focar no legado que essa pessoa deixou. Reconhecer quais eram os planos que ainda fazem parte da nossa vida e buscar honrar esse legado. Há formas de homenagear essa pessoa, também, se ela gostava de flores, porque não comprar uma flor ou, até mesmo, plantar uma árvore? Se ele gostava de livros, porque não escrever uma poesia ou um texto que fale sobre ele? Reconhecer a individualidade de cada um pode ser uma ferramenta. E claro, o luto não precisa ser uma vivência solitária. Caso a pessoa se sinta impotente, incapaz de retomar a vida, ela pode procurar um profissional ou grupos de apoio que tratam desse tema.”

Larissa Polejack, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB) e diretora de atenção à saúde da comunidade universitária

Com CB 

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