Gênero literário que retrata relacionamentos conturbados, protagonistas duvidosos e cenas gráficas faz sucesso no TikTok e começa a chegar no mercado editorial tradicional. Editora, escritora e psicólogas explicam sucesso, polêmicas e riscos
Por Julia Queiroz
Violência, relacionamentos conturbados e cenas gráficas não são novidade na literatura, mas são o centro da polêmica sobre o dark romance, um gênero literário que tem crescido nos últimos anos e movimentado debates acerca dos limites da ficção, do que pode ou não ser retratado em um livro e como este conteúdo é apresentado e difundido entre os leitores.
O termo, que significa algo como ‘romance sombrio”, acumula 1,6 milhão de vídeos publicados no TikTok, enquanto a hashtag #darkromancebooks (”livros de dark romance”) soma mais de 1 milhão. Uma pesquisa rápida em uma rede social como X (antigo Twitter) ou Reddit mostra como o gênero divide opiniões, com alguns defensores ferrenhos e outros usuários que se dizem preocupados com a popularidade das histórias.
“Eu descreveria como um livro cujo foco é romance, e em que os limites de uma relação amorosa são testados. Ele traz dinâmicas muitas vezes consideradas tóxicas e temas tabus, com protagonistas ‘moralmente cinzas’. Dinâmicas de poder entre um casal e os limites entre submissão e dominação são explorados. Cenas de sexo são comuns, mas não acho que sejam obrigatórias”, diz Julia Barreto, editora da Harlequin, selo de romance e ficção feminina da HarperCollins.
Os protagonistas de dark romance comumente são integrantes de máfias, criminosos procurados ou fazem parte de alguma rede de tráfico, apesar de isso não ser regra. A maioria dos livros retrata relacionamentos heteronormativos, mas também existem obras LGBT+. Os enredos e as cenas variam.
Em Meu Romeu Sombrio, de L.J. Shen e Parker S. Huntington, publicado pela Harlequin em março, a protagonista é mantida em cativeiro por um bilionário em uma espécie de releitura de A Bela e a Fera. Em Criaturas Cruéis, de J.T Geisseinger, que chega ao Brasil pela Rocco em maio, uma professora de uma cidadezinha se apaixona pelo braço direito do líder da máfia russa. Ambos os livros contém cenas de sexo explícito com BDSM (sigla de Bondage, Disciplina, Sadismo, Masoquismo).
Já em Assombrando Adeline (Cabana Vermelha, 2022), de H.D. Carlton, um dos mais populares do gênero, uma escritora é vítima de perseguição e se apaixona pelo seu stalker. O livro vem com um aviso de gatilho de CNC (consensual não consensual) e consentimento duvidoso, além de alertas para cenas de sexo com “armas, sonofilia, bondage e humilhação”.
Este último é um dos muitos dark romances exibidos nas prateleiras de Caroline Fawley, influenciadora e escritora de 29 anos de Bombinhas, Santa Catarina. “Eu gosto de dizer que o dark mostra o relacionamento entre dois personagens que provavelmente seriam os piores exemplos de ser humano possíveis”, diz.
Além de falar sobre o assunto em suas redes sociais, ela tem dois livros de uma mesma série publicados pela editora Fruto Proibido, especializada em livros eróticos. A história, que ela considera fazer parte do dark romance, foi originalmente publicada no Wattpad como uma fanfic de Harry Potter e acumula mais de 3 milhões de leituras no site. Caroline adaptou completamente a trama para poder publicá-la oficialmente, criando um novo universo mágico e separando-a da saga.
A escritora afirma que os protagonistas dessas obras costumam ter passados traumáticos e se sentem incompreendidos. “São livros muito complexos, porque temos que analisar contexto, levar em consideração quem [os personagens são]. É o tipo de coisa que não precisamos fazer em livros de romance mais ‘fofinhos’. Da mesma forma, é um livro que não está ali pra passar uma grande mensagem. Ele está ali pra entreter o tipo de leitor que gosta de uma leitura mais intensa e visceral”, opina.
Por que o dark romance é tão popular?
Para a psicóloga Ester Mendes Pereira, a popularidade do dark romance faz parte de um interesse natural do ser humano naquilo que é proibido ou chocante. “A transgressão, a violência, tudo isso atrai a nossa curiosidade, ainda que não gostemos de fato do que é descrito ali. Temos uma relação de ambivalência, de aproximação e afastamento, com esse tipo de conteúdo”, explica.
Além disso, ela diz que a leitura dos temas retratados no gênero pode ser uma “forma de aliviar o que foi contido e poder entrar em contato, por meio da ficção, com uma realidade onde a transgressão é permitida”.
Outro fator que chama a atenção é a predominância de mulheres tanto na autoria quanto no público leitor de dark romance. Para Ester, isso pode estar ligado a padrões sociais relacionados aos gêneros, e com aquilo que é mais “reprimido” para homens e mulheres. “No caso das mulheres, a sexualidade acaba sendo um tabu maior, e o fato de esses romances explorarem isso pode atrair mais esse público”, explica.
Comportamentos abusivos e polêmicas
Julia Barreto explica que, na maioria dos dark romance, o casal costuma ter um final feliz (“ou, pelo menos, a versão do autor de um final feliz”), apesar de todas as problemáticas que o relacionamento enfrentou ao longo da trama.
“Acho que muitos podem ver isso como um ‘aval’ para este tipo de relacionamento, como se o livro estivesse tentando vender que um relacionamento tido como problemático ou abusivo pode dar certo na vida real”, diz. Mas os livros podem romantizar ou normalizar estes comportamentos? Há controvérsias.
A psicóloga Ester Mendes Pereira aponta que essa discussão faz parte de um dilema social sobre o quanto se deve controlar algo potencialmente nocivo. “A literatura está na esfera da arte, e sabemos que proibições ou limitações nessa área podem ser mais prejudiciais do que benéficas. Estimular o pensamento crítico e promover a discussão de temas difíceis tratados nos livros pode ser uma forma de abordar a questão sem recorrer a um controle de obras criativas”, aponta.
Além disso, ela destaca que, desde cedo, aprendemos “a diferenciar o que é fantasia e o que não é, especialmente quando algo já é apresentado como ficção”.
Caroline Fawley argumenta que “toda discussão é valida”, mas que acredita que o dark romance atrai mais debate e polêmicas por retratar o sexo de forma explícita. “Tem muitos livros que falam sobre os mesmos tipos de crimes, ou que têm personagem abusivo, violência doméstica, e que acabam não entrando em polêmicas, não têm o mesmo impacto nas redes sociais e não assustam tanto as pessoas, porque não falam dessa questão sexual, que sempre foi um tabu na nossa sociedade”, opina.
A psicanalista Vitoria Whately também diz algo nesta linha: “As críticas que li em torno do dark romance apontam que há um erotismo machista, mas, na realidade, há um machismo enorme em tentar dizer como o interesse erótico da mulher deve se construir e que tipo de material elas devem gostar.”
Ainda assim, Vitoria diz que é preciso ter algum cuidado quando tratamos de violência, crimes e conteúdo sexual. “Acredito que algum tipo de aviso crítico, como é feito em relação aos conteúdos da televisão, é necessário e sempre bem-vindo, assim como a recomendação para maiores de 18 anos. Mas, quanto ao conteúdo, ele deve ser livre, pois é um conteúdo literário, artístico e não há novidade nisso. Se você ler Frankenstein, O Morro dos Ventos Uivantes ou até mesmo Romeu e Julieta, vai ter acesso a conteúdos abusivos romantizados.”
Para os entrevistados pelo Estadão, é difícil saber se há um limite para até onde o dark romance pode ir. Alguns livros, considerados mais leves, ficam neste universo da máfia, do bullying e do sexo violento. Mas outros apresentam cenas de estupro, pedofilia e abusos dos mais diversos tipos. Para Caroline, o gênero ainda é novo e experimental, então o que é considerado “pesado” é uma questão pessoal de cada um.
“Essa discussão sobre os limites entre ficção e realidade não tem uma resposta fácil, e é por isso que habilidades como pensamento crítico e intepretação de texto são tão importantes em um leitor, independentemente do gênero. Do meu ponto de vista, acho que cada um tem que estabelecer o próprio limite: o leitor vai estabelecer o limite de até onde quer ir, as editoras também vão estabelecer um limite de que tipo de dark romance estão dispostas a publicar, e o próprio autor vai estabelecer esta linha”, diz Julia Barreto.
Dark romance para adolescentes e classificação indicativa
O dark romance não é, necessariamente, uma novidade. Livros ou histórias do tipo vem sendo publicadas há anos de forma independente em formato de e-book ou em sites como Wattpad e Archive of Our Own. Agora, no entanto, elas começam a ganhar espaço no mercado editorial tradicional.
O termo voltou a repercutir recentemente com o lançamento do filme O Fabricante de Lágrimas, da Netflix, romance inspirado no livro homônimo da italiana Erin Doom. A história foi publicada originalmente no Wattpad, acumulou mais de 1 milhão de leituras e virou um fenômeno no TikTok. A adaptação foi um hit instantâneo no streaming e acumulou mais de 38,8 milhões de visualizações até o dia 21 de abril.
A trama foi divulgada como um dark romance, apesar de ser destinado ao público jovem. Na história, dois adolescentes são criados em um orfanato em que crianças sofrem abusos físicos e psicológicos. Os dois acabam sendo adotados pela mesma família e desenvolvem uma forte atração um pelo outro, mas a protagonista, Nica, é constantemente maltratada pelo garoto, Rigel.
A popularidade da trama fomentou o debate: existe dark romance para adolescentes? O gênero precisa ter cenas eróticas? As respostas também dividem opiniões.
“Gêneros são fluídos, principalmente subgêneros comerciais como o dark romance, então não temos um grande conjunto de regras que devem ser seguidas à risca. Acho que ele pode explorar a parte de dinâmicas de poder, dominância versus submissão sem, necessariamente, trazer conteúdo erótico explícito”, diz Julia Barreto, da Harlequin.
Para Caroline Fawley, contudo, uma das características do gênero são as cenas de sexo. Por isso, ela considera importante que os livros contenham avisos de gatilho e classificação indicativa, já que o acesso a eles é muito fácil, seja nas livrarias físicas, online ou por meio da pirataria, e não é incomum encontrar adolescentes que tenham consumido títulos com conteúdo adulto.
“Há sim um risco, como, infelizmente, há no consumo de pornografia e conteúdo violento por adolescentes”, diz Vitoria Whately. “Por isso, insisto na importância de haver um maior controle e vigilância dos adultos àquilo que está sendo oferecido e acessado pelos jovens, e que também haja espaço de escuta e troca para esses interesses. Mais uma vez, isso demonstra a extrema importância de que exista espaço de educação sexual dentro das escolas e instituições”, diz a psicanalista.
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Com Estadão