O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião do gabinete ministerial em Moscou, Rússia.

Mesmo que o Kremlin negue o envolvimento do governo russo na morte de Ievgeni Prigozhin, Putin tinha muitas razões para querer que o mercenário fosse morto

Por Tatiana Stanovaya*

THE NEW YORK TIMES – Pouquíssimas pessoas ficaram surpresas com a presumida morte de Ievgeni Prigozhin, ainda que os meios – um acidente de avião – tenham sido inegavelmente dramáticos. Tal eventualidade vinha sendo amplamente discutida nos círculos russos e ocidentais desde o breve motim do líder mercenário em junho. Não importa que Prigozhin depois tenha se reunido com o Kremlin e parecesse ir e vir como bem quisesse. Para muitos, era apenas uma questão de tempo até que ele recebesse o castigo.

Os eventos de quarta-feira permanecem envoltos em mistério. O jato de Prigozhin foi abatido ou houve uma explosão a bordo? Até que ponto as autoridades russas e, mais especificamente, o próprio presidente Vladimir Putin estiveram envolvidos no incidente? Se Prigozhin foi assassinado, foi uma decisão precipitada ou um plano bem pensado após a rebelião? O Kremlin, por sua vez, nega qualquer envolvimento no acidente. Seja qual for a verdade, é claro que Putin tinha muitas razões para desejar a morte de Prigozhin – razões que vão além da tentativa de reabilitar sua reputação.

Putin acredita fervorosamente em um estado poderoso. O público ocidental muitas vezes minimiza essa convicção fundamental, enfatizando, em vez disso, os interesses pessoais e as prioridades individuais de Putin. É verdade, claro, que existe uma grande dose de interesse próprio na conduta do presidente. Mas um dos maiores pesadelos de Putin é o risco de o estado ficar vulnerável, incapaz de enfrentar os desafios internos e à beira da desintegração. Foi precisamente isto que Prigozhin ameaçou. E pode ter pagado com a vida por essa transgressão.

A noção corrente é que os empreendimentos do grupo Wagner eram todos dirigidos pelo Kremlin, mas, na verdade, Prigozhin era a força motriz. Ele identificou proativamente áreas onde a Rússia era vacilante ou ineficaz e ofereceu seus serviços como solução provisória, sempre de uma forma que pudesse ser interpretada como benéfica para o interesse nacional. Embora Prigozhin trabalhasse em estreita colaboração com o Kremlin, ele tinha suas próprias prioridades. No entanto, ainda que Putin tenha indubitavelmente sancionado e financiado esses esforços, para ele a primazia do estado sempre teve precedência. Nada poderia prejudicá-lo. Prigozhin podia fazer suas aventuras desde que continuasse subserviente ao aparelho estatal.

Esse acordo funcionou por anos. Mas a guerra na Ucrânia perturbou o equilíbrio. Prigozhin, percebendo a oportunidade de avançar na carreira, começou a desafiar a liderança militar. Quando o conflito entre as duas partes se tornou insustentável, a preferência de Putin ficou clara: inequivocamente escolheu o lado do exército. Em janeiro, enfatizou que a guerra deveria ser travada de acordo com a estratégia do estado-maior, uma indicação clara de que o grupo Wagner deveria se subordinar. Até junho, esperava-se que todos os combatentes do Wagner que desejassem permanecer na Ucrânia formalizassem contratos com o Ministério da Defesa e aceitassem o comando de seus generais. Foi a gota d’água. A rebelião veio logo depois.

Foi um golpe humilhante para o regime de Putin. A dor veio menos da traição de Prigozhin, que sempre foi errático, do que da responsabilidade pessoal de Putin pelo desastre. Às custas do estado, o presidente havia alimentado uma entidade que não controlava. O motim, na sequência da incapacidade de Putin para gerir a escalada de tensões entre o Ministério da Defesa e o grupo Wagner, foi um resultado direto desse fracasso fundamental.

Plano

O custo político foi considerável. Putin se viu obrigado a ceder a Prigozhin, comprometendo sua estatura e sofrendo a indignidade pública. Agora ele confrontava um dilema espinhoso: como desmantelar um exército privado sem provocar reações políticas nem violência? No rescaldo da rebelião, a principal preocupação do Kremlin era neutralizar Wagner, tanto política como militarmente, com o objetivo de restaurar a estabilidade do estado.

O primeiro passo foi ganhar tempo. Nos termos do acordo que reprimiu o motim, Prigozhin garantiu sua liberdade e os integrantes do Wagner não foram acusados por sua participação, o que lhes permitiu, surpreendentemente, viajar como se nada tivesse acontecido. Em retrospectiva, parece uma abordagem lógica: Putin queria apaziguar Prigozhin, dando-lhe a sensação de que era insubstituível e gozava da proteção do estado.

Isto foi fundamental para garantir a saída de Prigozhin da Rússia. E permitiu a apreensão de alguns de seus ativos russos, além da retirada do acesso a contratos lucrativos (mesmo que seu negócio não tenha entrado em colapso total). Mais importante ainda, a partida de Prigozhin foi um prelúdio para a dissolução do grupo Wagner. As tropas Wagner mais dedicadas, um contingente de cerca de 5 mil combatentes, foram coagidas a se deslocarem para Belarus sob um novo líder, o leal e obediente Andrei Troshev; a artilharia pesada do grupo foi devolvida ao Ministério da Defesa; e os hesitantes foram forçados a se alistar no exército ou a voltar para casa. Na África e na Síria, as forças Wagner foram colocadas sob estreita supervisão, com um plano para absorver gradualmente seus projetos nos serviços de segurança e no Ministério da Defesa.

Ao longo dessa fase inicial de retirada do Wagner, o envolvimento de Prigozhin foi considerado necessário. Sua contribuição garantiu acesso tranquilo a pessoas importantes, facilitou avaliações de pessoal e auxiliou na tomada de decisões. Mas, assim que seus combatentes se transferiram da Rússia, efetivamente desarmados e ocupados em treinar as forças belarussas, as coisas mudaram. Ele se tornou um testemunho vivo da fragilidade do estado e uma recordação dolorosa da forma como Putin lidou com o gigante que ajudara a criar. Do ponto de vista do Kremlin, sua existência deixou de fazer sentido.

Independentemente da verdadeira causa do alegado falecimento de Prigozhin, o público russo com certeza verá a morte como um ato de punição e vingança. Poucas pessoas vão duvidar do envolvimento de Putin – uma percepção que se alinha bem com a imagem de presidente forte. Alguns analistas argumentam que existem possíveis desvantagens. Em primeiro lugar, Putin mostrou fraqueza ao não respeitar as garantias de segurança que supostamente dera a Prigozhin. Segundo, poderia haver uma reação negativa por parte dos círculos patrióticos, indignados com a execução flagrante de alguém que consideravam um herói de guerra. Terceiro, os soldados Wagner, certamente horrorizados com o assassinato, poderiam organizar outra rebelião.

Essas preocupações parecem exageradas. Afinal de contas, não houve garantias públicas e explícitas sobre a segurança de Prigozhin, apenas garantias – que foram cumpridas – de que ele iria para Belarus em segurança e de que as acusações criminais contra ele seriam retiradas. Além disso, a popularidade de Prigozhin despencou após o motim, pois muitos ex-apoiadores passaram denunciar seu comportamento. Quanto ao grupo Wagner, um vídeo vastamente divulgado, que pretendia retratar seus comandantes jurando vingança, foi desmascarado, e os canais oficiais fizeram apelos pela moderação.

Embora a morte de Prigozhin não restaure inteiramente a posição de Putin como líder decisivo – um jato executivo destruído não chega a ser um símbolo convincente de força – ela pode oferecer algum consolo aos radicais preocupados com o risco de o presidente ficar hesitante ou incapaz de administrar seu próprio círculo. Para as elites russas, o incidente serve como um aviso claro: desafiar o regime, quaisquer que sejam suas realizações, leva inevitavelmente à queda.

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*Stanovaya, pesquisadora sênior do Carnegie Russia Eurasia Center, escreve sobre as políticas interna e externa da Rússia. (Com NYT via Estadão)

Delmo Menezes
Gestor público, jornalista, secretário executivo, teólogo e especialista em relações institucionais. Observador atento da política local e nacional, com experiência e participação política.

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