Ginasta Simone Biles. Foto: Reuters

Campeã olímpica pelos EUA, admirada por nomes como a brasileira Rebeca Andrade, revolucionou a ginástica e se ergue como um símbolo contra os abusos, o racismo e em defesa da saúde mental dos atletas. “Não somos apenas atletas. Somos pessoas. E, às vezes, é preciso dar um passo atrás”

Por Carlos Arribas

Simone Biles revolucionou a forma―a força e as acrobacias deixaram em segundo plano a ginástica da perfeição do gesto técnico como objetivo absoluto― e o fundamento da ginástica artística feminina, e as ginastas já não são crianças que se calam assustadas, e sim mulheres com voz. Nesta terça-feira, ela se tornou também um símbolo em defesa da saúde mental dos atletas. A estrela da ginástica anunciou que está fora da decisão individual geral marcada para a manhã desta quinta-feira para cuidar da sua saúde. Ela já tinha desistido da final geral por equipes após um erro no primeiro aparelho, o salto.

“Tenho que me concentrar na minha saúde mental”, disse Biles, quatro vezes medalhista de ouro nas Olimpíadas, depois de deixar a final da ginástica feminina por equipes. Biles, de 24 anos, marcou 13.766 — sua pontuação mais baixa no salto olímpico — antes de desistir da competição. “Depois da apresentação que fiz, simplesmente não queria continuar”, disse ela. “Eu não confio mais tanto em mim mesma. Talvez seja o fato de estar ficando mais velha. Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás”, afirmou.

A ginástica feminina mudou. Os treinadores mudaram e mudou o modo como tratavam atletas na maioria dos casos em idade infantil, e mudaram as ginastas, agora donas de sua autoestima e da palavra. Aboliram o modelo tão admirado de Bela Karolyi, o treinador que com agressões e humilhações morais e públicas mais parecidas ao bullying do que a uma relação saudável, revolucionou os métodos de treinamento do mundo todo, produziu a fenomenal Nadia Comaneci e se transformou em referência aos técnicos do mundo inteiro, eles mesmo ex-ginastas criados e maturados com o mesmo treinamento que colocava como objetivo número um a magreza quase anoréxica das ginastas e a consideração da comida como veneno.

“Simone tirou da ginástica feminina os estereótipos de toda uma vida, da órbita”, diz a atleta olímpica espanhola Marina González. “É possível ser alta, baixa, mais nova, mais velha… Hoje [domingo] competiram Chusovitina, de 46 anos, e garotas de 16, algumas que nos deixam muito para trás… O bom da ginástica é isso, você pode ser de qualquer tipo físico e idade, pode ser o que quiser”.

Tudo começou em 2016 com um escândalo nos Estados Unidos, a denúncia por abusos sexuais ao médico da equipe norte-americana Larry Nassar contra quem mais de 260 ginastas ousaram depor, em um julgamento que acabou com uma condenação a mais de 200 anos de prisão.

As vozes levantaram uma ventania que percorreu o mundo todo libertando as línguas de ginastas em diversos países que nunca haviam se atrevido a denunciar, e principalmente uma ginasta, a número um, a melhor da história, não ficou de lado. Simone Biles por fim afirmou que ela também sofreu abusos por parte de Nassar e se comprometeu a continuar na ginástica, entre outras coisas, para ajudar todas as ginastas a falar e ser ouvidas, e para denunciar todas as autoridades que permitiram e encorajaram tais condutas. Seria impensável agora a falta de apoio que a ginasta espanhola Gloria Viseras sofreu anos atrás quando denunciou os abusos a que havia sido submetida pelo treinador Jesús Carballo. Sua voz quase não teve eco, e pouquíssimo apoio, sufocada pelas vozes oficiais e a recusa da federação a se aprofundar na investigação.

Rebeca Andrade chega com chance na final individual em Tóquio. Foto: Reprodução

Simone Biles é a única vítima de Nassar que continua na ativa. É a líder a quem todas olham, a quem admiram por sua força física e psicológica. Em abril de 2020, Biles estava treinando quando foi anunciado oficialmente o adiamento dos Jogos. Conta que imediatamente foi a um canto do ginásio e começou a chorar. Não se via capaz de aguentar mais um ano. Teve dias de depressão, de falta de sono, de tristeza. Viajou, comprou uma casa, terminou o namoro, se esqueceu da ginástica por algumas semanas, e voltou, mesmo que uma perguntinha sempre martele sua cabeça constantemente e é assim que diz às vezes: “Fora da ginástica, quem sou eu? Ainda estou me procurando”.

Como Simone Biles, Rebeca Andrade é negra, e como a tantas vezes campeã olímpica, passou por momentos de depressão, choros, por desejos de largar a ginástica, um vício. Em seu caso, pelas numerosas lesões, rompimentos dos ligamentos dos joelhos. A última, durante o Mundial de Stuttgart 2019, o que deixou a equipe brasileira fora de Tóquio. Ela está como participante individual. E, como todas as demais ginastas do mundo, Rebeca, de 22 anos, mais do que qualquer outra coisa, admira Biles, por quem quase daria a vida. E a admira não só como ginasta, e sim também por sua maneira de ser a melhor ginasta da história, pela generosidade que demonstra carregando o peso de falar por todas as mulheres negras, por sua vontade de mudar o mundo. Um desejo que também é o dela.

“É uma atleta incrível, que representa muitas de nós e que faz brilhar os olhos de muitas meninas negras no Brasil, as faz lutar, e o que ela representa para mim eu e minhas colegas, Lorraine e Daiane dos Santos, queremos ser para as outras”, diz Rebeca, que conquistou as audiências televisivas na noite de domingo com um exercício de solo ao ritmo do funk, bem brasileiro, do Baile de Favela, do MC João, versão órgão de igreja, mensagem da ginasta a sua mãe, evangélica fervorosa, toda uma declaração de princípios. “O MC João é de São Paulo, como eu, e me identifico muito”, diz a ginasta de Guarulhos, e é tão sólida nos outros aparelhos que entrou à força, segunda, entre Biles e sua compatriota Sunisa Lee, na fase de classificação à final da competição geral de quinta-feira, além de estar nas finais de solo e salto. “Agora, ainda mais, recebo muitas mensagens de mães dizendo que precisávamos dessa presença de ginastas negras. E admiro especialmente Simone por tudo o que suporta. Sua psicologia precisa ser muito forte”.

Algumas das melhores ginastas brasileiras são negras, como são negras, graças ao empenho de Biles, decidida a fazer com que seu esporte deixe de ser uma coisa de meninas ricas, loirinhas, de boa família, muitas das meninas que se preparam no World Champions Centre, o ginásio de Spring, Texas, propriedade de sua mãe, no qual a campeã treina. “Sem Biles, o esporte não seria tão diverso como é e como será”, escreve Juliet Macur no The New York Times, e conta que visitou o centro e se surpreendeu pela quantidade de meninas “de cor” que vinham de todas as partes dos Estados Unidos. Entre outras, lá se prepara Jordan Chiles, que faz parte da equipe dos Estados Unidos em Tóquio.

Com da informações do El País

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