Astro brasileiro do Al-Hilal deve ter privilégios em sua experiência na nação árabe, uma monarquia absolutista com leis restritivas impostas pelo islamismo

Por Redação

Depois de Santos, no litoral paulista, Barcelona, na Espanha, e Paris, na França, Neymar escolheu viver em Riad, capital da Arábia Saudita, onde terá o maior choque cultural de sua vida. Aos 31 anos, o astro brasileiro fechou com o Al-Hilal um contrato que lhe renderá em dois anos algo perto de R$ 2 bilhões e terá mordomias em um país com restrições impostas pelas leis islâmicas que ele possivelmente vai tentar driblar.

Maior cidade da Arábia Saudita, Riad tem pouco mais de 7 milhões de habitantes e apresenta proibições incomuns para quem vem de países do Ocidente. A nação árabe não permite, por exemplo, demonstração de afeto em público e o consumo de bebidas alcoólicas em qualquer espaço, diferentemente do que ocorre nos vizinhos Catar e Emirados Árabes, onde os residentes e estrangeiros podem consumir cerveja ou outras bebidas em hotéis, restaurantes e em suas casas.

A Arábia Saudita também pune severamente os atos sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo, é acusada de violar direitos humanos e é alvo de críticas internacionais pela guerra sangrenta no Iêmen e, mais recentemente, em 2019, pela morte do jornalista Jamal Khashoggi no consulado do país em Istambul, na Turquia.

No entanto, nos últimos anos, com a ideia de atrair mais turistas e de olho em melhorar a imagem da nação para o mundo, a monarquia absolutista do maior país da Península Arábica tem feito movimentos que indicam uma pequena abertura. Em toda a região, a realização de eventos esportivos “em geral foi percebida de forma positiva pelos habitantes”, diz Wadih Ishac, professor assistente de gestão esportiva na Universidade do Catar.

O governo saudita se tornou mais receptivo à mistura de sexos em público e tomou algumas medidas para controlar sua rigorosa polícia religiosa. As mulheres foram autorizadas a dirigir carros em 2018, mesmo ano em que foram liberadas para assistir a partidas em estádios de futebol, e o rigoroso código de vestimenta para as estrangeiras não é mais obrigatório.

“Hoje está mais aberto. Quem está no poder tem outra cabeça”, diz Cândido Sotto Maior, o Candinho, técnico com cinco passagens no futebol da Arábia Saudita, entre 1984 e 2007. Ele foi, inclusive, treinador da seleção do país, portanto, com alguns privilégios. O ex-técnico cita o príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman, que é quem efetivamente está à frente da nação, já que seu pai idoso, o rei Salman, abdicou da maioria de suas funções públicas de liderança.

Um dos homens mais ricos do mundo, Salman é primeiro-ministro e também comanda o PIF, fundo de investimento do governo que comprou o Al-Hilal, novo clube de Neymar. “Na minha época, quem mandava nos clubes eram esses reis antigos. Agora, os filhos deles foram estudar fora e eles gostam de futebol, tanto que são donos de clubes na Europa”, afirma Candinho.

Candinho fez parte do grupo de treinadores brasileiros composto por Telê Santana, Carlos Alberto Parreira, Luiz Felipe Scolari, Valdir Espinosa, Paulo César Carpegiani e Rubens Minelli, que “abriram o caminho” para a evolução do futebol saudita aventurando-se no mundo árabe entre os anos 1980 e 1990. “Na primeira vez, eles investiram nos treinadores, investiram nos brasileiros para ensinar os meninos”, lembra.

Privilégios

Neymar terá uma série de regalias no Oriente Médio. Vai receber cerca de 500 mil euros, cerca de R$ 2,7 milhões, por publicação em que promova a Arábia Saudita, terá uma equipe completa à disposição em sua mansão em um condomínio de luxo durante 24h, um avião particular, vários carros de luxo e poderá morar com sua namorada, Bruna Biancardi, mesmo não sendo casado legalmente com ela, o que por lei é proibido no país.

“Existe uma abertura maior nesse novo momento da Arábia, preparando-se também para o turismo. Casais com união estável são aceitos dentro do país”, crê o técnico Péricles Chamusca, um dos brasileiros que hoje trabalham na Arábia Saudita. Ele treina o Al Taawoun, o quinto clube que dirige no país onde vive desde 2018. “Várias ações foram tomadas no sentido de melhorar a vida dos estrangeiros”.

De acordo com informações da imprensa internacional, um Boeing 747-400 que pertence ao príncipe Al-Waleed bin Talal estará disponível para Neymar usar em suas folgas a fim de ir para qualquer lugar do mundo. A aeronave conta com uma suíte máster no andar superior, espaço para sofás revestidos em couro e também uma espécie de poltrona real banhada a ouro.

Chamusca não acredita que as leis islâmicas vão ser flexibilizadas a ponto de permitir privilégios para as estrelas do futebol, como Neymar e Cristiano Ronaldo. “Todos eles vão ter de respeitar as leis”, afirma. O atacante português poderá dar umas dicas ao colega brasileiro porque está lá desde o começo do ano. “O que eles têm, sem dúvida, são os privilégio de contrato, o que é normal pela valorização e pelo que representam em termos de divulgação do país e de melhoria da liga”, acrescenta o treinador.

Conhecido por ser anfitrião de grandes festas, Neymar terá liberdade para promover eventos em sua mansão, mas não da mesma forma que fazia em Mangaratiba, Barcelona e Paris. “Ele vai morar numa mansão, vai ter mordomias. Na minha época, a gente tinha uma mordomia razoável, hoje vai ter muito mais. Lá, tem condomínios só para estrangeiros”, comenta Candinho.

O jogador brasileiro, e sua turma, também não poderá consumir bebida alcoólica, uma vez que o consumo não é liberado em nenhum local e o governo não sinaliza com o relaxamento da lei. “A lei é clara, não existe essa possibilidade de consumir bebida alcóolica, o que também não se torna um incômodo para quem gosta porque Dubai e Doha são próximas de avião. Há várias maneiras de administrar isso”, sugere Chamusca, citando as cidades do Emirados Árabes e do Catar onde passa folgas e períodos livres. O problema para Neymar será se conter nas postagens das redes sociais.

Religião

Cristão, Neymar chegou à nação muçulmana na semana passada usando um chamativo cordão reluzente com um crucifixo enorme no peito. Ele tem várias tatuagens com referências religiosas e chegou a usar uma faixa em que se lia “100 Jesus” quando comemorou o então inédito ouro olímpico conquistado pela seleção brasileira nos Jogos do Rio, em 2016.

Não há uma norma que proíba a manifestação da fé cristã na Arábia Saudita, embora existam relatos de que a liberdade religiosa não é respeitada no país e a conversão ao cristianismo é proibida por lei, passível de aplicação da pena de morte. Lá, normalmente, qualquer adoração não-muçulmana ocorre em ambientes privados. “O que mais impactou aqui é a doutrina das orações. Eles rezam cinco vezes ao dia”, conta Ricardo Ryller, volante de 29 anos que defende desde 2021 o Al-Fayha.

Em dois anos, o jogador revelado pelo Luverdense e que passou pelo Bragantino disse ter conseguido se adaptar sem problemas aos costumes sauditas. “Ao contrário do que se diz, acredito que aqui não seja um país ruim de se viver. Há situações rígidas, mas favoráveis, como a segurança. É um país muito seguro”, destaca.

Com aporte vultoso no esporte, os sauditas estão sendo associados a “sportswashing”, termo que se refere à tentativa de um país em limpar sua imagem e melhorar sua popularidade. O governo saudita nega, porém, tal aspiração e diz que seu foco é atender ao interesse de seu povo pelo esporte.

O ambicioso projeto do governo saudita inclui sediar a Copa do Mundo de 2030, repetindo o que fez o seu vizinho Catar no ano passado. Daí os bilhões de dólares investidos em grandes estrelas mundiais, como Neymar, Cristiano Ronaldo e Benzema, e o fortalecimento da liga de futebol local. “Por todas as informações que tenho recebido, vejo que é um projeto duradouro”, acredita Chamusca, cujo discurso é endossado por Ryller. “Eles sabem o que estão fazendo, querem muito fomentar o turismo aqui”, argumenta.

A gastança esportiva saudita reflete em parte a dinâmica dentro do reino: uma nova enxurrada de petrodólares e a ambição de Salman para criar uma sociedade socialmente mais liberal e restaurar sua reputação manchada no Ocidente. Mas as mudanças também refletem a sensação de que há uma nova janela de oportunidade no esporte global: conquistar audiências maiores e mais novas, criar diferentes tipos de eventos e torneios e reinventar os antigos.

O reino quer que a Saudi Pro League, a liga saudita, atraia investimentos e torcedores. O objetivo é receber 100 milhões de visitantes por ano até 2030 (foram 64 milhões em 2021). As autoridades esperam que até lá a liga quadruplique sua receita para US$ 480 milhões, embora isso ainda seja insignificante diante, por exemplo, da Premier League, que gerou dez vezes mais no ano passado.

Candinho diz que aconselharia qualquer jogador, jovem ou veterano, a aceitar o volumoso dinheiro saudita, fruto dos ganhos com petróleo, para se aventurar no mundo árabe. “É o país do momento”, considera. “O futebol está melhorando, os estádios estão lotados, o campeonato está sendo transmitido para vários países”.

Com Estadão 

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