Proprietários e concessionárias têm dificuldade para se desfazer dos veículos usados, que enfrentam uma rápida mudança para tecnologias mais modernas e maior autonomia
Por Cleide Silva
A recente reviravolta no mercado global de carros elétricos, atualmente em desaceleração em países da Europa e nos Estados Unidos, provoca uma intensa queda nos preços de revenda e excesso de estoques nas lojas e fábricas. No Brasil, onde as vendas desses modelos estão aquecidas, ainda que sobre uma base pequena de comparação, a desvalorização de modelos 100% a bateria também preocupa. Automóveis com dois a três anos de uso e baixa quilometragem foram vendidos nos últimos meses com até 45% de deságio e, dependendo do modelo, por menos da metade do valor pago pelo novo.
Após rodar 54 mil km, por dois anos e meio, com um Peugeot e-208, adquirido por R$ 249 mil, o empresário paulista Maurício de Barros decidiu vendê-lo. Fez anúncios em plataformas especializadas e, em quatro meses, não recebeu propostas. Em julho, entregou o modelo a uma concessionária por R$ 100 mil como parte da troca por outro elétrico. “Foi uma paulada”, diz.
Barros reconhece, contudo, ter “pago o preço por estar entre os primeiros a ter um carro 100% elétrico, quando não havia muitas opções e todos os modelos eram caros”. Seu consolo é ter adquirido um BYD Yuan Plus novo, com mais itens de tecnologia e 480 km de autonomia, ante 320 km do e-208. O modelo custou R$ 209 mil porque a marca deu desconto de R$ 30 mil para aquela versão.
A rapidez na evolução tecnológica dos automóveis elétricos, a deficiência na infraestrutura de recarga e a guerra de preços intensificada pelas empresas chinesas a partir do ano passado, que levou as demais marcas a baixarem seus preços, são os principais fatores que levam à desvalorização dos seminovos. Já os preços dos modelos híbridos usados têm comportamento mais próximo ao dos carros a combustão.
Um Nissan Leaf Tekna 2023 zero, por exemplo, tem preço sugerido pela fabricante de R$ 298,4 mil, mas pode ser encontrado nas concessionárias com 15% de desconto, ou R$ 252,1 mil, de acordo com a consultoria automotiva Kelley Blue Book (KBB). A versão do mesmo ano com 14 mil km rodados custa, nas revendas, R$ 196,1 mil, um deságio de 22%. Já na troca por outro carro, os lojistas pagam 37% menos (R$ 158,8 mil).
Híbrido tem deságio menor
Com cerca de 33 milhões de visitas por mês e 1,5 milhão de leads (propostas de compra), a maior plataforma de venda online de veículos do País, a Webmotors, registra desvalorização média de 12% nos preços dos carros elétricos neste ano e de 6% para os híbridos. Os modelos convencionais têm perda média de 2,25%, informa o CEO Eduardo Jurcevic. Os elétricos são apenas 1,2% dos cerca de 400 mil veículos em estoque na plataforma. Os híbridos são 2,3%.
A demanda por elétricos na Webmotors é 12% menor em relação aos tradicionais. Os motivos, na opinião de Jurcevic, são o desafio da infraestrutura e, em muitos casos, o receio da duração da bateria de um carro já usado ou da necessidade de manutenção. O tempo médio para venda é 26% maior em comparação aos automóveis a combustão ou híbridos.
No mês passado, a revenda Amazon, autorizada da Volkswagen em São Paulo, suspendeu as compras de elétricos devido ao longo período em que permanecem nas lojas. A concessionária tem cinco Nissan Leaf em estoque há um ano e meio, chegou a anunciá-los pela metade do preço da tabela Fipe (referência em preços de carros usados) e não teve interessados. “Nossos lojistas parceiros também pararam de comprar elétricos por causa da depreciação alta”, diz Marcelo Jallas, diretor da Amazon. A Volkswagen tem dois veículos elétricos no Brasil, o ID.4 e o ID Buzz, disponíveis apenas para a modalidade de assinatura.
Frota de locadoras
Nem mesmo as locadoras de veículos – tradicionalmente responsáveis por metade das vendas totais de automóveis das montadoras – estão buscando os elétricos. Juntas, elas têm 4,3 mil modelos com essa tecnologia e 6,8 mil híbridos em suas frotas, informa Paulo Miguel Junior, vice-presidente da Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (Abla). O número equivale a menos de 1% da frota total.
A maior empresa do setor, a Localiza, encerrou 2023 com 2,7 mil elétricos e híbridos em uma frota de 631 mil veículos. As primeiras unidades de elétricos adquiridas pelo setor há cerca de três anos, principalmente de marcas tradicionais, foram revendidas a preços “muito abaixo do esperado, com cerca de 40% a 45% de depreciação”, diz Miguel Junior.
Esses veículos, segundo a Abla, foram comprados por valores altos e em dois anos tiveram significativa desvalorização após a chegada das marcas chinesas, com ofertas mais competitivas e tecnologias mais avançadas. As montadoras tradicionais tiveram de reduzir seus preços para não perderem competitividade e quem comprou antes ficou com a conta do deságio.
Uma das pioneiras em ter frota de elétricos, a Movida adquiriu, a partir de 2021, cerca de 600 modelos Leaf, Renault Zoe, Fiat 500e e BMW i3. Em menos de dois anos, a maior parte estava parada nos pátios por falta de demanda e foi colocada à venda. Segundo fontes do mercado, alguns ficaram até seis meses encalhados. Vários foram vendidos com preços até 40% abaixo da tabela Fipe. O grupo suspendeu a compra da maior parte de um lote de 250 BYD Tan prevista para 2022. A Movida não comentou o tema.
Fora do Brasil o cenário é ainda pior. Uma das maiores locadoras dos EUA, a Hertz, desistiu neste ano da aquisição de 100 mil carros da Tesla por causa da desvalorização rápida dos seminovos. O comércio dos automóveis usados sempre foi importante fonte de receita para as locadoras.
Uso maior por aplicativos
Grande parte da frota atual de elétricos das locadoras brasileiras tem, em média, menos de um ano de uso e não completou o ciclo para revenda, tradicionalmente de até dois anos. Por isso, o presidente da Abla não sabe qual será o parâmetro de preços dessa nova leva, principalmente dos modelos chineses. Juntas, BYD e GWM são responsáveis por 58% das vendas de elétricos e híbridos novos neste ano.
A maioria dos carros eletrificados está alugada para frotas de empresas, motoristas de aplicativos e por assinatura (em contratos de dois a quatro anos). Poucos estão disponíveis para locação diária pois não há demanda, informa Miguel Junior. A 99, por exemplo, tem 4,8 mil motoristas com carros elétricos em São Paulo e 1,2 mil com híbridos.
O diretor sênior da 99, Thiago Hipolito, explica que a plataforma tem parcerias com várias empresas como BYD, Movida, Santander, Osten e Dahruj para fomentar o uso de veículos eletrificados entre os motoristas parceiros. Há ofertas de descontos nos preços para aquisição ou locação, juros mais baixos nos financiamentos, vouchers de recarga e instalação de carregadores nas residências.
Vendas em alta
Enilson Sales, presidente da Fenauto, associação dos revendedores de carros usados, afirma que, apesar da desvalorização, as vendas de eletrificados (elétricos e híbridos) cresceram 90% de janeiro a julho, somando 33 mil unidades. Desse total, 83% têm até três anos de uso. Já os negócios com veículos a combustão foram 9% superiores em relação a 2023 (8,8 milhões unidades).
Ele pondera que a comparação “é injusta, pois os eletrificados estão em franca ascensão”. Segundo Sales, é cedo para se ter uma sinalização mais forte sobre esse segmento, pois ainda é um nicho de mercado. “Mas é possível dizer que a desvalorização será maior do que a dos modelos a combustão nesses primeiros anos.”
Estratégias contra o deságio
As chinesas BYD e GWM, marcas que agitaram o mercado com carros elétricos e híbridos importados, prometem iniciar produção local no próximo ano, em princípio fazendo apenas a montagem de kits trazidos da China. Atentas ao movimento de desvalorização principalmente dos preços da concorrência, ambas adotaram estratégias de recompra de seminovos a valores próximos aos da tabela Fipe.
Assim que completam um ano de mercado, os carros da BYD são aceitos pelas concessionárias por 90% do valor da Fipe na troca pelo mesmo modelo zero. “Estamos fazendo isso com o Song Plus (híbrido plug-in) e com o Tan (elétrico) e vamos incluir o Dolphin (também elétrico), que neste mês completa um ano de lançamento”, diz Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da montadora. Segundo ele, todos os modelos que forem lançados no País serão incluídos nesse plano.
Baldy vê as informações sobre a desvalorização dos elétricos como “distorcidas”, pois atrapalham o mercado e assustam o consumidor. “Isso é o que as grandes montadoras que não têm produto para vender fazem questão de difundir porque não conseguem concorrer”. Para ele, avaliações envolvendo modelos com poucas unidades comercializadas, e vários deles já fora do mercado, não são justas pois não representam o mercado como um todo.
A GWM também tem um programa de recompra por 80% do valor da Fipe para os dois modelos à venda no País, o Haval nas versões híbrida e híbrida plug-in e o elétrico Ora. A promoção é válida para carros com até dois anos de uso na troca por outro da marca. A empresa também expandiu a estratégia de manter seus produtos valorizados ao fazer acordos com locadoras e seguradoras.
Conforme Ricardo Bastos, diretor de Relações Institucionais da GWM, o valor da apólice de seguro de modelos da marca caiu quase 50% após a empresa assumir qualquer eventual despesa com a bateria, item que representa cerca de 40% do custo dos elétricos.
Para as locadoras, a garantia de oito anos para as baterias oferecida ao consumidor se estende aos contratos de assinatura. Além disso, a locadora não fica com o carro em seu estoque, que só é adquirido após o cliente fechar o contrato. A manutenção também fica por conta da GWM. “Nossa preocupação é que o valor de revenda do carro não desabe”, diz Bastos.
Segundo o executivo, que também preside a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), não há desvalorização generalizada de preços dos eletrificados, mas uma questão pontual de algumas marcas, principalmente relacionada à chegada de novas tecnologias. “Cada vez mais os carros vão ter saltos tecnológicos e o modelo antigo deixa de ser referência de preço para o zero.”
Bastos não acredita que a desvalorização dos eletrificados usados altere o interesse dos consumidores pelos novos. Em sua opinião, o mercado está em expansão e este ano deve chegar a 150 mil unidades, quase 60% a mais ante 2023. Desse total, a ABVE prevê que 110 mil serão de elétricos e híbridos plug-in (também podem ser carregados na tomada) e 40 mil híbridos.
Defasagem vai continuar
A perda maior de valor dos elétricos em relação aos veículos convencionais tende a continuar, segundo Ricardo Roa, sócio-líder do setor Automotivo da KPMG no Brasil. “Acho que vai ocorrer bastante dessa desvalorização nos próximos dois a três anos por conta da celeridade da tecnologia e da maior autonomia, além do aumento de portfólio por parte das fabricantes”. Para ele, esse movimento só diminuirá quando as mudanças no segmento ficarem mais estabilizadas.
Roa também avalia que a tendência de deságio nos usados não terá impacto no mercado de novos. “É como a mudança de uma tecnologia do celular; o novo continua sendo muito atrativo.” De janeiro a agosto foram vendidos 41 mil automóveis elétricos zero-quilômetro no Brasil, todos importados, número quase oito vezes maior que o de igual período do ano passado. De híbridos e híbridos plug-in foram quase 70 mil, alta de 58%. Hoje, há cerca de 316 mil veículos leves eletrificados em circulação, 0,6% da frota total do País.
As vendas de seminovos 100% a bateria aumentaram 34% até julho, para 4,7 mil unidades. O descompasso com o mercado de zero tem a ver com a baixa oferta de modelos que já tenham completado o primeiro ciclo de revenda.
Defasagem ‘justificável’
O vice-presidente da Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores (Abravei), Thiago Garcia, vê a defasagem dos usados como “justificável” pois muitos dos automóveis novos estão chegando ao mercado com mais tecnologia e mais baratos em relação àqueles vendidos a partir de 2018 e 2019, além da disputa de mercado promovida pelas marcas chinesas.
Em sua avaliação, falta informação adequada aos compradores principalmente relacionadas às mudanças tecnológicas e ao preconceito com os modelos usados. A questão das baterias é um deles. As fabricantes dão garantia de cinco a oito anos para as baterias e, na maioria dos casos, a degradação é pequena. “Um amigo tem um Volvo XC40 que já rodou 210 mil km e a degradação da bateria foi de 10%”, exemplifica Garcia.
A falta de infraestrutura também é um problema, mas ele vem diminuindo, segundo a Abracei. Maurício de Barros, que utilizou seu Peugeot e-208 por mais de dois anos, conta que fez várias viagens, inclusive para Buenos Aires, na Argentina, e nunca ficou parado por falta de energia.
Segundo Barros, é necessário ter um plano de viagem traçando todos os locais onde há postos de recarga, usar aplicativos que mostram os carregadores e se estão livres, e também verificar se hotéis e pousadas disponibilizam tomadas. Ele tem um carregador portátil que funciona em tomadas normais e um adaptador. Seu plano para março de 2025 é percorrer 16 mil km com um carro elétrico. “Vou subir a Cordilheira dos Andes, passar pela costa do Pacífico, deserto do Atacama e vários países.”
Siga o Agenda Capital no Instagram>https://www.instagram.com/agendacapitaloficial
Com Estadão