Marília Mendonça durante apresentação em imagem postada por ela mesma em 30 de outubro. REPRODUÇÃO/TWITTER

Era esse o lugar de Marília: cantora e compositora de canção popular. Afetos do Brasil contemporâneo passavam por sua voz. Muito do país no século XXI se reunia no que ela representava

Por Redação*

“Isso não é uma disputa/ Eu não quero te provocar”. São esses versos que abrem Infiel, uma das canções mais tocadas no Brasil em 2016 — e primeiro sucesso nacional na voz de Marília Mendonça, responsável pelo início do reconhecimento que a levou ao posto de uma das artistas mais populares do país nos anos seguintes.

Marília era compositora de canções, terreno tradicionalmente dominado por homens no cenário da música brasileira —a despeito da grandeza de Dona Ivone Lara, Marina Lima, Adriana Calcanhotto e Tati Quebra Barraco, entre outras. Mas, como dizem os versos, não estava disputando nem provocando ao se lançar. Ou seja, sua música não reagia a nada nem a ninguém. Pelo contrário, seus versos —e a segurança do canto e da melodia com que os empunhava— sempre vieram de uma perspectiva feminina afirmativa. “Estou te expulsando do meu coração/ Assuma as consequências dessa traição”, confirma o refrão de Infiel. Sem disputa, sem provocação, sem adjetivos, sem metáforas. “Olhos nos olhos”, como Chico Buarque cantou, mas sem o ressentimento —só a contundência.

Enfim, se a canção popular é a educação sentimental do brasileiro, Marília inaugurou uma escola —ou ao menos a consolidou, levando-a a um lugar mais elevado. Uma escola que pode ser sintetizada na expressão feminejo, como ficou conhecido esse subgênero que a inclui ao lado de artistas como Maiara & Maraisa (com quem Marília se juntou no projeto Patroas) e Simone e Simaria.

Marília, porém, como toda grande artista, sempre foi maior do que o escaninho que mercado e imprensa a colocaram. Cantou, por exemplo, com Anitta (Some que ele vem atrás) e Gal Costa (Cuidando de longe). A baiana havia pedido a ela uma música para seu álbum Pele do futuro, de 2018 — disco que juntava canções de compositores incensados da nova geração da MPB, como Tim Bernardes e Silva, e nomes consagrados, como Gilberto Gil e Djavan. Em texto lamentando a morte da cantora no trágico acidente de avião desta sexta-feira, Caetano Veloso lembrou sua recém-lançada canção Sem samba não dá, na qual cita uma série de artistas brasileiros populares hoje. Marília é a única citada duas vezes, ele nota, uma delas como “Mar(av)ília Mendonça”.

Era esse o lugar de Marília: cantora e compositora de canção popular. Afetos do Brasil contemporâneo passavam por sua voz. Muito do país no século XXI se reunia no que ela representava, esse encontro de feminismo (sim, independentemente do que ela pensasse disso) e agronegócio; de paixão romântica e hedonismo de night; de canto formado em coro de igreja e de algoritmos que limitam olhos e ouvidos do público; da legitimidade vulgar e da vulgaridade legítima do amor.

E havia, claro, a inteligência e sensibilidade com a qual ela transformava isso tudo em música. Um exemplo nítido aparece no verso que ela declama no início de Todo mundo menos você, gravado em Patroas, lançado neste ano: “Só queria que você soubesse que toda a minha mudança é genuína. Genuinamente por você”. Num drible de sete segundos, ela faz graça sobre qualquer expectativa sobre seu papel. Porque seu compromisso, desde quando começou a compor para artistas sertanejos anos antes de se lançar como cantora, era, mais uma vez, a canção popular.

São muitos os números que definem Marília num mundo de números: os mais de 38 milhões de fãs no Instagram, os mais de 22 milhões de seguidores no YouTube, os mais de 8 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Acima deles todos, porém, um número é o mais marcante: 26 anos. É esse o mais lembrado nos lamentos dos fãs e colegas por sua morte trágica. Pela solidez do que conquistou em cinco anos, havia muito mais pela frente.

*Com El País

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