Gustavo Romero, professor da Universidade de Brasília e coordenador de testes, mostra a vacina da Sinovac Imagem: Andressa Anholete/Getty Images.

O psicanalista Christian Dunker também afirma que, independentemente da origem do laboratório, a vacinação é vista como um processo muito intrusivo.

Por Redação*

Quando a vacina Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, começou a ser testadas em voluntários na capital paulista, em julho, a secretária Aparecida*, 45, sentiu o sangue gelar e tomou uma decisão: “Não tomo essa vacina nem que me paguem”.

Aparecida não se encaixa exatamente nos 9% da população brasileira -ou 19 milhões de pessoas- que afirma não desejar tomar uma vacina para conter a doença, segundo dados do Datafolha. A questão dela é com a origem da imunização, não com a vacinação em si. Das mais de 150 vacinas em produção no mundo em busca de imunização contra a Covid, 6 já chegaram à fase 3, de testes em larga escala em humanos, e, dessas, metade é chinesa.

Apesar de não concordar com a necessidade do isolamento social, Aparecida circula pelas ruas de máscara e álcool em gel. Tem medo de contrair a Covid-19, infecção causada pelo novo coronavírus, mas também teme o produto desenvolvido pelos chineses.

Eles querem dominar tudo. A internet, o 5G e, agora, até a vacinação. Não vou entrar nessa, afirma Aparecida*, 45 anos.

Você deve conhecer alguém que pense como Aparecida. Esse tipo de pensamento, porém, surge com mais frequência nas conversas durante a refeição, nos comentários de notícias postadas em redes sociais e nos grupos de WhatsApp. A reportagem abordou alguns perfis que, nas redes, dizem temer a Coronavac e suas compatriotas, mas eles se mostraram ressabiados em explicar seus motivos. A própria secretária não quis mostrar seu rosto ou compartilhar seu sobrenome por medo. O técnico de enfermagem Antônio*, 35, foi outro.

Há evidências de que o novo coronavírus foi criado na China, por que vou tomar a vacina que eles produzem? Diz Antônio*, 35 anos.

Quando a reportagem lembra que estudos indicam que o vírus não foi desenvolvido em laboratório, Antônio não quis ampliar seu raciocínio, mas mandou um vídeo que, para ele, mostra que a pandemia é parte de uma conspiração mundial.

Mas de onde vem esse medo? “Para alguns, a China é um país comunista, que tem a bandeira vermelha, que está em uma disputa comercial com os EUA, país cuja influência no Brasil é muito grande”, afirma o psicanalista Christian Dunker, colunista do UOL. Instalou-se, assim, uma espécie de Guerra Fria da imunização.

Se fosse uma vacina norte-americana [testada no Brasil], não teríamos a mesma reação. Teríamos alguma resistência, mas não tão intensa, pontua Christian Dunker, psicanalista.

Dunker também afirma que, independentemente da origem do laboratório, a vacinação é vista como um processo muito intrusivo. “É como se o Estado estivesse entrando dentro de seu corpo”, fala. “Esta é uma retórica que tem uma boa entrada em nossa subjetividade, por isso campanhas antivacinação conseguem agregar adeptos apesar de ser claramente anticientífica. Temos isso como uma inclinação psíquica.”

A busca por um inimigo

Para a psicanalista Vera Iaconelli, identificar um inimigo comum faz com que a gente possa se eximir da culpa. “Em situações muito dramáticas, catastróficas, é de se considerar que os sujeitos procurem respostas. Como é difícil lidar com a imprevisibilidade da vida, os sujeitos tendem a encontrar culpados. Como, no caso do surto de Covid-19, os responsáveis somos nós, humanidade, que estamos invadindo o ecossistema, é difícil lidar com essa culpa tão difusa, em que você também tem sua parcela de responsabilidade.”

Ela assinala que essa não é a primeira e nem será a última vez que iremos apontar dedos e demonizar pessoas por causa do desespero, “A humanidade já enfrentou momentos históricos gigantes baseados nisso.”

Para Vera, os “chineses são a bola da vez”. “O [presidente americano Donald] Trump se apoia muito nisso, e outros líderes seguem o exemplo. Muitas pessoas, na falta de senso crítico, acabam encontrando a resposta no que essas figuras falam.”

Tanto Aparecida como Antônio citam, ainda, que não acreditam na “confiabilidade” da imunização desenvolvida pelo Instituto Butantan. “Eles não testaram em mais ninguém e estão nos usando como cobaia”, fala a secretária. Além dos 9.000 brasileiros voluntários, a Indonésia também participa da fase de testes.

Um meme muito compartilhado nos grupos que rechaçam a opção chinesa é um em que aparecem zumbis da série de “The Walking Dead” com a seguinte frase: “tomamos a vacina chinesa e estamos nos sentindo muito bem.”

E se a chinesa chegar antes?

A fama no Brasil dos produtos chineses, considerados de baixa qualidade por conta do tipo de importação que fizemos durante muito tempo, estende a xenofobia comercial para a produção científica. Junta-se a isso o fato de que ela saiu na frente em relação aos testes com voluntários no país. “Existe esse medo generalizado da tecnologia, de novidades. Tudo isso contribui para a animosidade contra o medicamento feito pela Sinovac”, diz Dunker.

O diretor do Instituto Butantan chegou a prever na semana passada que a vacina esteja disponível para vacinação em massa em dois meses. A Unifesp, que testa no país a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, também cogita uma licença emergencial para aplicação, caso os resultados se mostrem eficazes, mas sem indicar o prazo.

E se a Coronavac se viabilizar antes das outras opções em teste? Após muitos e muitos meses de isolamento social, terá a ciência o poder de vencer a ideologia? “Aí fica difícil. Como, depois de criar toda uma narrativa de eles são culpados de tudo, você vai aceitar algo que vem deles?”, reflete Vera Iaconelli. Mas ela pondera: Se ela [a Coronavac] for efetiva, tiver bons resultados, com certeza boa parte deles vai tomar, não importa de onde ela venha, afirma a psicanalista Vera Iaconelli.

*Com informações do UOL

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here