O drama de quem espera pela operação no país onde a obesidade mata mais que armas de fogo

Por Redação*

A cozinheira Maurícia Pereira de Souza, de 36 anos, espera desde 2014 para fazer cirurgia bariátrica. Como a fila não anda, sua vida também está estagnada. Desempregada, esbarra sempre no peso de seus 146 quilos para conseguir trabalho. “Estive numa casa em que a patroa, quando abriu a porta e me viu, disse que não era nem para eu entrar. Ela perguntou: ‘Como é que você vai limpar o rodapé?’.” Outra vez, Souza foi chamada para cuidar dos filhos de uma delegada. Iam a uma festa. Quando entrou no carro, com as duas cadeirinhas, teve de se encaixar. Depois da festa, a delegada disse que Souza era muito boa, mas que não cabia no carro. “Da última vez, fui para uma entrevista num supermercado. Tenho ensino médio ( completo ) e habilidade para falar com os outros. A outra menina tinha a sétima série, não abria a boca, mas foi contratada. Ela vestia 38. O que importa é a aparência. Você se sente lá no chão. Eu me sinto inferior a qualquer outra pessoa.”

Sem trabalho, falta dinheiro para comprar os remédios de que precisa, além da insulina, que toma três vezes por dia e pega no posto de saúde. O preço da alimentação é outro complicador na perda de peso: em Belford Roxo, Rio de Janeiro, onde mora, a padaria próxima vende cinco pãezinhos por R$ 1. O saco do pão integral sai geralmente por R$ 11. A médica pediu que evitasse arroz e feijão, para não descontrolar a glicemia, e comesse mais legumes e proteína. No dia em que recebeu a reportagem de ÉPOCA em sua casa, Souza tinha apenas repolho na geladeira. Carne não deu para comprar.

A causa da obesidade de Souza só foi descoberta recentemente, quando passou pelo psicólogo do processo da bariátrica. Foi com ele que ela rememorou os abusos sexuais sofridos aos 9 anos na casa da tia. Para evitar voltar ao lugar onde encontrava o abusador, acabou se fechando em casa com a irmã e aprendeu a cozinhar. A comida era o refúgio para a dor e uma forma de desviar as atenções dela. “Queria que olhassem para quem quer que fosse menos para mim. Por outro lado, hoje sinto muito preconceito. Às vezes a pessoa gorda não é assim porque quer, mas por causa de alguma coisa que fizeram com ela. É muito fácil julgar por fora, mas saber o que está dentro é difícil.”

Já é possível realizar cirurgia bariátrica através do SUS por vídeolaparoscopia. Foto: Reprodução

Maurícia Pereira de Souza, de 36 anos, diz que não consegue trabalho por causa do peso. “Como é que você vai limpar o rodapé?”, perguntou uma dona de casa que buscava uma empregada doméstica.

Mais que um problema de inserção social, a obesidade, em muitos casos, é uma questão de vida ou morte. Uma análise em 27 países da América Latina e do Caribe realizada recentemente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) mostra que o excesso de peso e a obesidade são responsáveis por 300 mil mortes por ano – quase o dobro do número de pessoas assassinadas na região. No Brasil, 116.976 pessoas morreram devido às doenças causadas pela obesidade em 2015, último ano com dados disponíveis.

“Diante de uma demanda de milhões, o SUS fez apenas 11.402 operações de redução de estômago no ano passado”

Na dificuldade e na espera por uma cirurgia, a cozinheira Souza não está sozinha. Dados do sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), divulgados pelo Ministério da Saúde, classificam as pessoas de acordo com o índice que mede o grau de obesidade, conhecido pela sigla IMC. De acordo com o último levantamento, 13,6 milhões de brasileiros possuem IMC acima de 35. Para quem está na faixa entre 35 e 40 e tem doenças associadas, como diabetes e hipertensão, o tratamento indicado é a cirurgia bariátrica. O mesmo vale para pessoas com mais de 40 de IMC – limite em que começa a obesidade mórbida – , independentemente de terem alguma enfermidade ligada ao peso. Diante dessa demanda de milhões de pacientes, a resposta do governo tem sido minúscula, o que explica as filas que demoram anos.

Em 2018, apenas 11.402 operações de redução de estômago foram feitas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No Dia Mundial de Combate à Obesidade, celebrado no começo de outubro, dados atualizados mostraram um aumento no número de intervenções de quase 12% no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado, mas o número foi considerado insuficiente. “A oferta pelo SUS até vem aumentando, mas é totalmente incompatível com a demanda e a necessidade”, afirmou Marcos Leão Villas Bôas, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM).

Jucéia Damasceno, de 48 anos, espera há sete anos para fazer a cirurgia.”Sou diabética e hipertensa. Tenho uma ferida na perna que não está cicatrizando por causa do diabetes e do peso. Se eu emagrecer, vai fechar mais rápido”, afirmou.

A também cozinheira Jucéia Damasceno, de 48 anos, moradora do Rio de Janeiro, com IMC 54, espera há sete anos para fazer a cirurgia. Já era para ter sido atendida, mas há cinco anos teve um problema de saúde e ficou internada justamente na data da consulta. Perdeu a vez. Há dois anos, entrou outra vez na fila. “É muito tempo de espera, mas estou fazendo os exames e acho que agora vai. Preciso da cirurgia porque sou diabética e hipertensa. Tenho uma ferida na perna que não está cicatrizando por causa da diabetes e do peso. Se eu emagrecer, vai fechar mais rápido”, afirmou Damasceno.

Como ela já sabe, a operação bariátrica é indicada para pacientes que não conseguiram perder peso depois de dois anos de acompanhamento médico. Mas emagrecer não é uma tarefa fácil para pessoas com doenças associadas, como problemas nas articulações ou hipertensão, que tornam a prática da atividade física muito complicada e até perigosa. “Depois que a pessoa chega a determinado peso, é quase impossível emagrecer bastante por livre e espontânea vontade, por mais que ela tente”, disse Villas Bôas.

Benedita Antônia Camelo perdeu 40 quilos depois de fazer a cirurgia de diminuição do estômago e, após anos trancada em casa, foi neste mês ao chá de bebê da filha.

Quando Benedita Antônia Camelo, de 51 anos, chegou ao IMC 80, um médico pediu urgência em seu caso. Foi chamada para a consulta e recebeu a orientação de voltar em três meses, com 10% a menos de peso. Emagreceu, mas, segundo ela, sua ficha não havia sido lançada no sistema. Nova consulta, novo pedido de perda de peso em outros três meses. Em julho, finalmente conseguiu fazer a bariátrica. “Não vou mentir: eu descontava tudo na comida, achava que aquilo tiraria as coisas ruins de minha mente”, lembrou. “Os obesos gostam muito de massa. Uma lasanha inteira da caixinha não me satisfazia, 1 litro de refrigerante não matava minha vontade”, afirmou. Pouco mais de três meses após a cirurgia, Camelo já perdeu cerca de 40 quilos. Depois de quase dez anos “trancada em casa”, num final de semana de outubro foi ao chá de bebê da filha. “Antes da cirurgia eu não andava, então não teria ido.” Além do grande evento, ela celebra poder desempenhar pequenas atividades como varrer a casa e ajudar os netos a colocar os tênis. Sonha em arrumar um emprego, mas, enquanto não consegue renda fixa, pequenas economias fazem diferença: “Eu gastava muito com comida. Agora, com R$ 10 já posso comer a semana toda. Meu marido compra legumes, eu faço uma sopa. Um pedacinho de batata, de abóbora já alimenta. Como meia laranja e guardo o resto para depois. Antes, 1 quilo de comida não me satisfazia”.

Os benefícios descritos por ela foram identificados num estudo com 500 pacientes para avaliar aspectos socioeconômicos da vida de pacientes depois de um ano da operação. A pesquisa feita pelo Programa de Cirurgia Bariátrica do Estado do Rio de Janeiro revela que, passados 12 meses, 86% dos pacientes não usam medicamentos e que o gasto com alimentação, material de higiene e vestuário adaptado cai, em média, 50%.

Embora as cirurgias tenham um histórico positivo no tratamento da obesidade, elas não são promessa de magreza eterna. Estudos internacionais indicam que entre 20% e 40% dos pacientes têm reganho de peso depois de dois anos. Esse aumento equivale a engordar, pelo menos, entre 10% e 20% sobre o menor peso alcançado no pós-operatório, mas há casos de pessoas que recuperam todo o peso perdido. Muitas questões costumam interferir no período logo após a diminuição do estômago, entre elas reações a medicamentos, problemas clínicos como hipotireoidismo e, também, aspectos comportamentais. Foi esse ângulo que a psiquiatra Maria Francisca Mauro, do Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), decidiu abordar.

Mauro fez uma avaliação psiquiátrica de 109 pacientes com pelo menos cinco anos de cirurgia e constatou que 52% dos pacientes continuam com algum diagnóstico psiquiátrico, como depressão (39%), compulsão alimentar (37%) e uso excessivo de álcool (13%). “Os dados reforçam os resultados de um estudo nacional que mostra que 57,8% de candidatos a essa cirurgia apresentam algum quadro psiquiátrico prévio à cirurgia. Na população geral, por exemplo, cerca de 4% têm transtorno de compulsão alimentar. Entre os candidatos à cirurgia, já são 17%. Entre depressão e obesidade há marcadores biológicos compartilhados, então quem tem um problema tem mais chance de desenvolver o outro”, afirmou a psiquiatra, que defende o acompanhamento prévio e posterior do paciente. “A cirurgia é eficaz e tem benefícios incontestáveis, mas a gente tem de entender que os pacientes que vão para essa intervenção têm questões psiquiátricas que precisam ser cuidadas.” Como apontou Mauro, os pacientes saem do hospital e voltam para a mesma vida, a mesma casa, a mesma família.

“‘A cirurgia é eficaz, mas temos de entender que os pacientes têm questões psiquiátricas que precisam ser cuidadas’, disse a psiquiatra Maria Francisca Mauro”

Parte dos médicos argumenta que deveria ser papel do governo dar à questão da obesidade um olhar semelhante ao que já é comum no caso de doenças provocadas pelo tabaco. É fato que o governo tem sofrido mais pressão, com o pedido de novas medidas, como campanhas para estimular o consumo de alimentos naturais, além da redução da carga tributária de alimentos básicos e menos calóricos. “O grande mal da obesidade são as comidas industrializadas, que a população de baixa renda acaba consumindo mais porque é mais barata e menos perecível”, disse Cid Pitombo, que coordena o Programa de Cirurgia Bariátrica do Estado do Rio de Janeiro.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu, no dia 23 de setembro, uma consulta pública sobre rotulagem nutricional nos alimentos industrializados, mas o modelo proposto foi considerado insuficiente por diversas organizações, entre elas a Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada, da qual fazem parte mais de 30 entidades, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o Conselho Federal de Nutricionistas. Diversos países já adotaram medidas mais duras para tentar conter o número de obesos. Na Irlanda, desde 2018 as bebidas adoçadas estão sujeitas a novos impostos e os consumidores pagam mais por elas. No Japão, um dos países mais magros do mundo, a Lei Metabo exige que empresas que tenham muitos funcionários com alta circunferência abdominal promovam medidas para emagrecimento, como atividades físicas. Já na Itália, os restaurantes têm de informar se o alimento é congelado, sob pena de multa.

*Da Redação com informações Época Online 

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